Gian Amato especial para O Globo
Pesquisa de banco de dados Pordata mostra que analfabetismo caiu de 25,6%, em 1970, para 3,1% após o movimento que acabou com a ditadura, em 1974; crescimento da ultradireita traz preocupações
Lisboa - Intenso como os cravos sobre
as roupas cinzentas de 1974, o vermelho de um sinal fechado salvou
Rita da prisão. A então estudante de 21 anos combatia na clandestinidade a
ditadura em Portugal e
achava que era seguida nas ruas de Lisboa pela temida e violenta Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), adepta da tortura que aniquilou ou
quase matou alguns de seus camaradas. Ela conta que teve a sorte de parar em um
semáforo, abrir a porta e fugir para o carro ao lado, dirigido por um amigo de
infância.
Era, assim, carregado, o clima em Portugal
antes do 25 de abril de 1974, data da
Revolução dos Cravos, que completa 50 anos na quinta-feira. O
fim da ditadura de 48 anos (1926-1974), a mais longa da Europa, trouxe
liberdade e comprovou como a democracia melhorou os índices de um país
considerado atrasado e pobre, como revelou o banco de dados Pordata, num estudo
inédito.
“Em 1970, um em cada quatro portugueses (25,6%) era analfabeto. Em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%. Cerca de 68% das casas não tinham chuveiro, 53% não tinham água canalizada e 42% não tinham instalações sanitárias, números que se inverteram quase totalmente”.
Segundo um trecho do livro “A Revolução Gentil”, que será lançado em maio pelo escritor Ricardo Viel, mais de um terço da população vivia sem luz elétrica. Havia cerca de 30 mil presos políticos e entre 7 a 10 mil livros censurados. Só em Lisboa, 90 mil pessoas (mais de 10% da população à época) vivam em cerca de 18,5 mil barracas Eram os “bairros de latas”, ou simplesmente favelas.
Ali viviam milhares de mulheres, relegadas
pela ditadura ao papel de submissas ao homem por imposição de um Código Civil
do século XIX. Elas e seus filhos foram as primeiras a ocupar casas e só depois
permitiam a entrada dos homens. Também ganharam direito ao voto.
— O homem era o chefe e a mulher lhe devia
obediência, como mandava o Código. Isso desapareceu com o 25 de Abril. Mulheres
que viviam nas favelas foram com seus filhos para casas ocupadas e depois
chamaram os maridos. Fábricas com mão de obra feminina aderiram às greves.
Houve um pacto universal para mudar a família e a sociedade. Alterar a
mentalidade demorou mais. Mas o fato era que, de repente, tínhamos as leis mais
avançadas da Europa — lembrou Rita, pseudônimo de Irene Flunser Pimentel, que
uma vez livre da opressão, virou escritora e historiadora especialista na
ditadura.
Não houve banho de sangue, mas quatro pessoas
morreram na revolução. Segundo Pimentel, todas as vítimas foram assassinadas
pela PIDE. A tomada do poder foi organizada pelos militares, que planejavam
entregar o comando para a sociedade civil, como de fato aconteceu. O 25 de
Abril suave pôs cravos nos canos das armas, imagem atraiu o “turismo da
Revolução”, levando a Portugal o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o francês
Jean-Paul Sartre e o alemão Heinrich Böll, três vencedores do Prêmio Nobel de
literatura. E também Sebastião Salgado, Simone de Beauvoir e muitos outros
renomados escritores, jornalistas, fotógrafos e cineastas.
— Foi a época do ‘turismo vermelho’. Havia
voos fretados da Europa em rota contínua. Lembro que passei a atuar como uma
guia informal, não formada, porque estudei no Liceu Francês e sabia falar
outros idiomas. O que eu fazia como Rita, na clandestinidade, passei a fazer em
liberdade, ao ar livre — conta a historiadora.
Hoje, Portugal respira os 50 anos do 25 de
Abril, o que traz à tona o debate em torno da criação de uma rota turística
oficial sobre a Revolução dos Cravos para preservar e promover locais
históricos.
— A revolução é pouco explorada em termos
turísticos. Se em 1974 muita gente veio conhecer o país que tinha derrubado uma
ditadura com uma revolução pacífica, hoje pouco se fala disso para os milhões
de turistas que todo ano visitam Lisboa — lamenta Viel: — As iniciativas do
poder público são tímidas e mal-feitas. Desafio qualquer pessoa a ir à Praça do
Comércio e achar alguma referência, uma placa ou busto, sobre o que aconteceu
lá no dia 25 de Abril de 1974. Visitar o quartel da Pontinha, onde foi o Posto
de Comando do Movimento das Forças Armadas, é fazer uma viagem no tempo (e nem
todas são boas). Tudo o que está lá parece que foi feito nos anos 80 e nunca
mais foi tocado.
Ultradireita em alta
Para a historiadora, uma rota dos Cravos
seria também uma maneira de rebater o saudosismo fascista que tem ocupado ruas
e redes sociais. Principalmente com grupos organizados para idolatrar a figura
do ditador António de Oliveira Salazar, que ingressou no governo em 1928, criou
o Estado Novo em 1933 e comandou o
país com mão de ferro até morrer, em 1970.
— Mesmo com dados que provam como a
democracia só fez bem, há quem defenda que na ditadura de Salazar é que era
bom. É reflexo de um processo que começou com as eleições de Donald Trump e
Jair Bolsonaro e liberou as
pessoas da vergonha que tinham de dizer o que pensavam. Em Portugal
culminou no partido Chega — diz Pimentel, que também faz um alerta para o simbolismo de
ter 50 deputados da ultradireita do Chega eleitos para o Parlamento justamente
nos 50 anos da retomada da democracia: — O Parlamento é a principal instituição
da democracia e a vontade deles é destruir a democracia.
Uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa para o
semanário “Expresso” e para a rede SIC revelou que 35% dos simpatizantes do
Chega dizem que Portugal está pior do que na ditadura. Embora a maioria das
pessoas ouvidas acredite que a vida esteja melhor, também considera que a
criminalidade e a corrupção pioraram. Outro alerta da pesquisa: 34% preferem
ter um líder forte e alçado ao poder sem eleições democráticas.
Em um jantar oferecido na segunda-feira em
Lisboa a jornalistas estrangeiros, o presidente Marcelo
Rebelo de Sousa afirmou que a transição pacífica do 25 de Abril
é um orgulho. E ressaltou que a população percebe os benefícios que a
democracia trouxe.
— Neste momento, apesar de ainda existirem dois milhões na pobreza, das desigualdades e da falta de coesão territorial, os portugueses sentem que estão vivendo um momento sem sobressaltos econômicos. As ajudas do governo acomodaram a situação social e a sensação é de razoável estabilidade política.
Tive a oportunidade de ver a festa dos 50 anos da Revolução dos Cravos em Portugal. Foi linda a festa, cheia de cravos vermelhos nas lapelas de muita gente. Dizem que os há, mas não vi ladrões nem batedores de carteira. Mendigos nas ruas, poucos, quase nenhum. Senti tristeza pelos 35 mil moradores de rua que São Paulo tem. Mas senti alegria por saber que em Portugal foi possível sanar com a maior parte desses problemas. Foi lindo o Vinte e Cinco de Abril!
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