Folha de S. Paulo
Governo tem motivos para judicializar
desoneração da folha, mas gesto tende a agravar tensão entre Poderes
Num universo kantiano, pautado só pela obediência às regras, não haveria o que contestar na decisão do Planalto de levar ao STF a questão da desoneração da folha de pagamentos. Neste mundo regrado, sempre que há dúvidas sobre a constitucionalidade de alguma medida, cabe ao Supremo dirimi-la, e qualquer agente legitimado pode a qualquer tempo levar qualquer problema à corte. Mas, para o bem e para o mal, o planeta é menos kantiano do que desejariam os deontologistas. As coisas têm também dimensão política —e isso muda o jogo.
Um ultrakantiano poderia argumentar que só
cogitar de que o STF possa atuar politicamente já viola a regra da separação
dos Poderes, pela qual órgãos do Judiciário deveriam ser exclusivamente
técnicos. Isso talvez valha no reino das abstrações, mas, no mundo real, a
própria Carta reconhece
implicitamente os contornos políticos do Supremo. Se os integrantes de outras
cortes superiores são escolhidos por meio de listas elaboradas com filtros
técnicos, no caso do STF os critérios são bem mais livres (a rigor, não é
necessário nem diploma de direito) e eminentemente políticos (indicação
presidencial e aprovação pelo Senado).
Em condições normais, o STF navega sem
maiores dificuldades pelas ambiguidades de um Poder que é tecnico sem deixar de
ser político. O problema é que não estamos sob condições normais. Supremo e
Legislativo vêm há algum
tempo se estranhando. Parlamentares entendem que os magistrados vêm
invadindo competências que seriam exclusivas do Congresso. Temos ainda um
ex-presidente encrencado com a Justiça que faz o que pode para pintar as
decisões judiciais contra si e seu grupo como perseguição política.
Nesse contexto, ao empurrar para o STF uma
batata quente que tensiona ainda mais o ambiente, o governo, embora tenha
razões técnicas (econômicas com certeza e jurídicas talvez), pode estar jogando
contra seus interesses de longo prazo.
Não sei.
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