Folha de S. Paulo
Em novo livro, escritor aborda ataque que
sofreu em 2022
Não é preciso morrer para escrever uma
obra-prima. Mas Salman
Rushdie, dessa vez, exagerou: no dia 12 de agosto de 2022, enquanto
discursava no palco de um anfiteatro, foi brutalmente esfaqueado por um
criminoso de 24 anos.
Sobreviveu, ninguém sabe como. E publicou
agora o relato
dessa quase-morte –"Faca: Reflexões sobre um Atentado"–, com uma lucidez e
ironia que só não são invejáveis porque o horror que as permitiu não é coisa
que se inveje.
A ironia está no lugar do crime e no motivo
que levou Rushdie até lá: Chautauqua, pequena cidade no norte do estado de Nova
York, para falar sobre a importância de proteger os escritores dos seus
eventuais inimigos.
Mal comparando, é como imaginar Chapeuzinho
Vermelho falando sobre os perigos da floresta para uma alcateia de lobos.
Foi então que um lobo se levantou da audiência, correu para Rushdie e, durante 27 segundos (o tempo que demora a recitar um soneto de Shakespeare, esclarece ele), foi desferindo golpes sobre golpes –no rosto, no peito, no olho direito–, exatamente como Rushdie sempre imaginou que aconteceria.
Essa familiaridade tem dois sentidos aqui.
Durante 33 anos, o escritor viveu sob a condenação à morte sentenciada pelo
aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini depois da publicação do livro "Os
Versos Satânicos". Meia dúzia de complôs foram tentados, e frustrados,
contra o escritor durante esse tempo.
Mas, dois dias antes do ataque, Rushdie
também sonhou com o encontro fatal: no pesadelo, viu-se no meio de um
anfiteatro romano, à mercê da fúria de um gladiador.
Quando acordou, o homem que não acredita em
premonições pensou seriamente em cancelar a sua viagem a Chautauqua.
Não admira que, no momento do ataque, uma
frase e uma pergunta tenham cruzado a sua mente. "Aqui está você",
pensou, com a resignação de um condenado. "Mas por que agora?",
perguntou, com terrível incredulidade. O passado não tinha já passado?
Pelo visto, não. O criminoso lera apenas duas
páginas do célebre livro. A radicalização acontecera no YouTube, assistindo a
vídeos sobre Rushdie e suas alegadas heresias. Foi o que bastou.
Apesar da mediocridade intelectual do
personagem, Rushdie tenta falar com ele. Não na realidade –Rushdie não é
Beckett, que fez questão de se encontrar com seu agressor parisiense depois de
também ter sido esfaqueado.
O encontro é uma simulação literária e um dos
grandes momentos do livro. Discutem ambos a crença e a descrença, Deus e os
seus intérpretes, a sociedade laica e as suas tentações.
No fim, Rushdie é levado a concluir, ou
talvez a confirmar, a futilidade de qualquer conversa. Tudo é ressentimento no
coração de um terrorista. Ele, Rushdie, não passara de um pretexto. "Qual
foi o rosto que você viu quando me tentou matar?"
Notável pergunta. Terá sido o rosto do pai?
Da mãe? Dos irmãos?
Do amor não correspondido?
Dos amigos que se perderam, ou que nunca
apareceram?
Ou terá sido o rosto do próprio terrorista?
Sim, Salman Rushdie é um pretexto, mas Deus
também é. "Os homens tendem a ter as crenças que se adequam às suas
paixões", escreve Rushdie, citando Bertrand Russell. "Os homens
cruéis acreditam num Deus cruel e usam essa crença para desculpar a sua
crueldade. Só os homens bondosos acreditam num Deus bondoso e seriam bondosos
em qualquer caso."
O criminoso é irrelevante, conclui o autor. O
criminoso é ninguém. Perdoá-lo ou não, odiá-lo ou não, entender seus motivos ou
não –tudo isso é conferir ao inominado (nunca lemos o nome do criminoso no
livro) uma dignidade, ou uma atenção, que ele não merece.
O que resta, então?
Para Rushdie, continuar. A verdadeira vitória
é poder continuar amando, escrevendo, vivendo, mesmo que a felicidade possível
exiba as cicatrizes de um passado que não se esquece.
Continuar, em suma, é responder à violência com
a arte –e talvez seja isso que perturbe tanto os fanáticos: a incapacidade para
saírem do mundo estreito e violento em que vivem, transfigurando seus medos e
fracassos em algo de belo e duradouro.
Agora que penso nisso, é uma hipótese
normalmente ignorada nas discussões sobre a liberdade de expressão. A inveja
dos fanáticos é mais forte que suas crenças ou sentimentos.
Que texto maravilhoso, senhoras e senhores.
ResponderExcluirQue texto !
Maravilhoso mesmo!
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