O Estado de S. Paulo
Propor o perdão aos agentes implicados no 8 de Janeiro significa propor o rateio dos custos do crime não entre seus autores, mas entre suas vítimas. Essa conta não é nossa
A agenda criminal do Supremo Tribunal Federal
(STF) voltou a atrair as atenções a partir da revelação de fatos que precederam
os atentados contra a democracia de 8 de janeiro de 2023. Com um ex-presidente
da República no raio de ação do tribunal, o interesse está agora concentrado na
capacidade da lei de alcançar agentes – públicos e privados – que tenham
contribuído para a execução desses crimes. Esta fotografia mais panorâmica da
cena delituosa está respaldada por valores sedimentados nas sociedades avançadas,
como a legalidade (aplicação da pena apenas a quem tenha praticado um crime) e
a igualdade (aplicação da pena a todos que o tenham praticado). Mas, afinal,
quem deve pagar a conta desses crimes?
Do ponto de vista legal, respondem por um delito não apenas aqueles que sujaram suas mãos, executando-o diretamente. O Código Penal estende a responsabilidade àqueles que, embora sem executá-lo, tenham concorrido para sua execução, auxiliando ou instigando a prática criminosa por terceiros. O sujeito que encomenda um homicídio responderá pelo homicídio, tal e qual seu executor. Enquadram-se na mesma situação aqueles que tenham estimulado a realização do crime ou propiciado os meios (armas, recursos financeiros) empregados na sua execução.
Esse esclarecimento resolve uma falsa
premissa, segundo a qual a responsabilidade penal estaria restrita a quem tenha
praticado “atos executórios” de um crime; um raciocínio que teria como
contrapartida a eliminação dessa responsabilidade a todas as pessoas que tenham
dado sua cota de participação no delito em momento anterior à sua execução por
terceiros. Corrigindo a rota: se o crime chegou a ter sua execução iniciada,
por ele responderão seus executores e, também, aqueles que previamente à sua
execução os tenham auxiliado ou instigado a esse fim.
Com relação aos episódios do 8 de Janeiro, a
partir das denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República e das
evidências colhidas pela Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal julgou
comprovados os crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito
e tentativa de golpe de Estado. E condenou seus executores. Considerando que
esses crimes tiveram seus antecedentes lógicos – os autointitulados patriotas
não convergiram em Brasília por acaso, e tampouco sem estímulo moral (instigação)
e material (auxílio) –, o curso natural da investigação parece justificar a
ampliação de seu perímetro. Isso para abranger condutas prévias ao 8 de Janeiro
que tenham servido para motivar, mobilizar ou viabilizar os ataques
antidemocráticos.
A origem de tudo é conhecida: a disseminação
do descrédito ao processo eleitoral e a seu resultado, com associada insinuação
de fraude atribuível à Justiça Eleitoral. Caberá à Procuradoria-Geral da
República, se for o caso, ampliar o espectro acusatório. Seja como for, devem
responder pelos crimes, além de seus executores, aqueles que tenham concorrido
para sua consumação, instigando ou auxiliando terceiros a executá-los.
E quanto aos custos do 8 de Janeiro?
Certamente, não se reduzem às peças de nosso acervo artístico e arquitetônico –
atentemos ao diversionismo: o cerne do atentado não está na destruição física
do relógio de Balthazar Martinot ou da cadeira de Alexandre de Moraes.
Atentados à democracia não têm objetos como alvo, mas valores; valores
essenciais a uma sociedade livre, que erguem sua Constituição e permitem aos
cidadãos conduzir sua vida privada, planejando seu destino com maior segurança.
É isso o que parecia estar sendo testado minuto a minuto (ou minuta a minuta):
a solidez de nosso regime democrático e do marco civilizatório que o estrutura,
identificado com a limitação e a divisão do poder, a garantia de direitos
individuais e a submissão de todos à lei, governados e governantes.
Enquanto Polícia e Justiça fazem sua parte,
cabe-nos o desafio de reconsolidar esses valores numa sociedade em boa parte
subnutrida de informação veraz, que já não se importa com a fonte do que
consome e difunde em redes sociais ou grupos de WhatsApp. Esse desafio se torna
ainda maior diante do paradoxo de tentar usar a democracia para perdoar os
atentados contra ela praticados: aportou no Congresso Nacional – um dos palcos
da destruição do 8 de Janeiro – projeto de lei que visa a anistiar acusados
pelos crimes em referência. Propor o perdão aos agentes implicados nos
atentados contra a democracia significa propor o rateio dos custos do crime não
entre seus autores, mas entre suas vítimas. Essa conta não é nossa.
Os temas estão temporalmente relacionados: a busca pelo imunizante penal ocorre no momento em que as investigações caminham para a revelação dos agentes instigadores do 8 de Janeiro. E vem à tona na sequência de fervorosos discursos na Avenida Paulista, onde pudemos ouvir que “Supremo é o povo”. O último documento do século 20 a estabelecer que o merecimento de castigo deveria se ajustar ao “sentimento do povo” foi a reforma do Código Penal do Reich, de 28 de junho de 1935, uma lei que viria a pavimentar o caminho do nacional-socialismo. Ou é tudo coincidência ou precisamos redobrar nossa vigilância.
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