O Estado de S. Paulo
Não avançaremos se a lógica política continuar a ser vivida exclusivamente como contraposição mal qualificada entre esquerda e direita
O Brasil estacionou. Tudo transcorre como se
as cartas já tivessem sido lançadas e o antagonismo se reduzisse ou a ruídos
congressuais ou a embates retóricos entre a esquerda oficial, devidamente
entronizada no Palácio, e a direita extremada, agarrada a seus fantasmas e à
fustigação moralizante contra tudo o que possa exalar direitos e democracia.
No meio disso tudo, a economia fica como a joia da Coroa. Se avança e é alcançada pelas reformas pontuais do ministro Haddad, os ares melhoram. Se trava, é um Deus nos acuda.
O que há de agitação vem dos guetos
identitaristas, indiferentes à política prática e aos sentimentos das maiorias
silenciosas. São guetos que conversam para dentro, não para fora. Produzem
atritos contraproducentes, que quase nada acrescentam à luta política
propriamente dita. Flutuam na esfera moral, de onde imaginam disparar flechas
que conscientizem a população.
Os guetos trabalham com temas inegavelmente
importantes – racismo, feminismo, reconhecimento, desigualdade, direitos –, mas
traduzem isso em termos de guerra cultural, como se sua missão fosse forçar a
população a interiorizar plataformas que não são didáticas e se perdem em
teorizações acadêmicas. Como decorrência, alimentam as pautas da extrema
direita, terminando por funcionar como se fosse seu sparring inconsciente.
O País continua o mesmo, só que, agora, não
há quem organize os conflitos e a contestação social. Fica tudo meio solto,
exacerbado, ao sabor dos ódios, dos afetos e das paixões que se compõem nas
redes sociais. É fácil imaginar por que não se formam consensos.
O que tem havido de progresso vem dos
influxos externos (da dinâmica incessante do capitalismo, da revolução
tecnológica dos nossos dias), não da ação explícita do Estado ou de sujeitos
nacionais. Lula 3 não consegue repetir o que houve de avanço em seus dois
governos anteriores. Governa agarrado ao fisiologismo do Legislativo e sob as
asas do Judiciário. Como não há uma oposição democrática que o chame à razão
política e o ajude a privilegiar o fundamental – boas políticas públicas, um
programa claro e consistente de governo –, o governo justifica sua inação
alegando que está cercado pela extrema direita. É um argumento falso,
especialmente porque a variante extremista está mais preocupada com manter
ativos seus nichos de seguidores fiéis, sem se importar muito com o que faz ou
deixa de fazer o governo, confiante de que se sairá bem nas eleições municipais
e valorizará seu passe para as presidenciais de 2026.
A palavra de ordem deveria ser renovação.
Trocar modos de pensar, abandonar o vocabulário de gueto, convergir para algum
centro de coordenação da democracia progressista, que traga consigo uma nova
forma de comunicação política, novos hábitos e procedimentos. Seria ótimo se
surgisse um centro democrático que misturasse progressistas sensatos e
direitistas liberais, que civilizasse a política nacional e desse um rumo de
longo prazo ao País.
Isso poderia compensar a presença atabalhoada
de uma esquerda oficializada, sem inserção social, sem pegada programática,
aprisionada a jargões antigos e a flertes inconsequentes com atores
internacionais pouco confiáveis, como se a guerra fria não tivesse terminado e
as relações internacionais fossem as mesmas de antes. A esquerda brasileira
ainda não processou o que há de novo no mundo e em cada sociedade. Não consegue
interagir com os personagens da vida digitalizada (os empreendedores, os
trabalhadores de aplicativos, os uberizados), com as novas igrejas e com as
multidões de pessoas em estado de angústia, decepção e sofrimento. Soube atrair
vários partidos para sua base legislativa, mas não consegue governar sem
sobressaltos e com resultados efetivos.
Uma esquerda envelhecida e sem programa,
quando chega ao poder, transfere ao governo mais problemas do que soluções.
A esquerda não se viabilizará dizendo à
população que sua tarefa é impedir a volta da extrema direita. Precisa entregar
mais do que isso. Se a direita tem crescido ao prometer Deus, pátria, família,
propriedade e “liberdade de expressão”, o que a esquerda pode oferecer no lugar
disso tudo? Defender-se da virulência bolsonarista? É muito pouco. A ameaça
direitista nada oferece em termos de políticas públicas. Seu alvo é a
destruição institucional. Há um espaço enorme para que a esquerda democrática
se recomponha, se modernize, amplie sua articulação e diga qual seu papel no
Brasil atual.
Tudo isso é fácil de ser proclamado e muito
difícil de ser levado à prática. Mas não deveríamos fechar os olhos para a
realidade que se descortina: o País está parado e não voltará a caminhar se
continuarmos a transferir responsabilidades para os inimigos internos e a
culpar o “capitalismo insaciável” pelos males que nos fazem sofrer. Não
avançaremos se a lógica política continuar a ser vivida exclusivamente como
contraposição mal qualificada entre esquerda e direita. Há muito mais coisas no
céu do que aviões de combate.
Muito bom!
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