Folha de S. Paulo
Defesa da democracia já não basta para conter
a força desse espectro antigo e profundo
Jair
Bolsonaro perdeu as eleições —e seu golpe de Estado deu chabu.
Ele não
poderá disputar cargos públicos até 2030, além de ter contas pendentes com
a Justiça que poderão deixá-lo fora do jogo, sabe-se lá por quanto tempo.
O que o mantém vivo na política, além de
parcela da opinião pública, são a sua conspícua família e o espaço que lhe
concedem, não sem ambiguidades, aqueles que à sua sombra se elegeram
governadores, senadores e deputados.
Mas é possível que seu prestígio e sua liderança no campo da direita declinem. Nesse caso, terá destino semelhante ao de líderes populistas derrotados nas urnas mundo afora, em proporção maior dos que permanecem no poder e corroem a democracia por dentro.
Outra coisa é a presença, na vida pública
brasileira, do populismo de extrema direita, cuja permanência de certa forma
independe do que possa ocorrer com o ex-capitão.
Tratando do fenômeno na Europa, o cientista
político americano Larry
Bartels, em "Democracy Erodes from the Top" ("A Democracia
Desaba a Começar do Topo", em tradução livre), chama a atenção para a
existência de reservatórios de sentimentos e atitudes do público que abastecem
o populismo de direita.
São estáveis ao longo do tempo, mudam pouco
de tamanho e só ganham importância política quando líderes se dispõem a
explorá-los para ganhar eleições.
No Brasil, o reservatório é grande, antigo e
fundo. É formado pela rejeição aos políticos profissionais —e às elites em
geral— uns e outras irremediavelmente corruptos; pela desconfiança das
instituições representativas; pelo anseio de segurança e ordem que alimenta o
aplauso a políticas de mão dura contra o crime; e, ainda, por valores
reacionários em matéria de educação, religião e família.
Anos a fio, diferentes combinações desses
sentimentos foram mobilizadas por populistas de direita como Jânio Quadros,
Paulo Maluf, Fernando Collor e Bolsonaro, sem falar nas centenas de políticos
que seguem povoando os governos locais, as Assembleias Legislativas e o Congresso
Nacional, atulhados de pastores e pastoras, delegados de polícia, cabos e
coronéis aposentados.
A diferença em relação ao passado é que hoje
os sentimentos a avolumar o reservatório são alimentados por uma multiplicidade
de organizações da sociedade civil —laicas e religiosas—, por núcleos que
produzem interpretações do que foi ontem e do que é hoje e pelo uso habilidoso
das redes sociais.
Embora imprescindível, a defesa da democracia
já não basta para conter a força do populismo de direita e assim evitar a
tragédia periodicamente encenada com diferentes elencos.
Verdade.
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