Folha de S. Paulo
Inconcebível que 129 parlamentares sejam
favoráveis à autoria da execução da vereadora Marielle Franco
Num país cuja república rezou pelo
catecismo positivista, apostando no progresso como desenvolvimento da
ordem, é tentador invocar o evolucionismo de Augusto Comte para abordar situações sociais. Ainda que a
involução dê a tônica. É o caso da segurança pública, que vira questão
nacional, decisiva para avaliação do nível de vida, tanto por autoridades como
por humildes componentes da cidadania urbana. Talvez seja hoje o único ponto de
consenso entre elites e povo.
O problema é do país inteiro, mas o Rio oferece maior espelhamento pela magnitude da promiscuidade entre política e crime: o fato social desaparece num Triângulo das Bermudas da civilidade. Não mais Estado paralelo, mas "infiltração do Estado formal pelo crime", como sustenta o jurista Abel Gomes (em "Crime Organizado e suas Conexões com o Poder Público"). Milicianiza-se a existência, basta curto percurso de táxi para ouvir uma história de vida abusiva.
Na rotina de um motorista, morador do
Complexo do Lins, o dia começa com a dificuldade de tirar o seu táxi da rua,
bloqueada por barras de ferro. Paga a garotos para retirar e recolocar a
barreira. Ao tráfico, paga taxa semanal, "gatonet"
e ambígua garantia de segurança. Ainda assim, avalia estar melhor do que no
Complexo de Israel, distante a quilômetros de sua casa, onde traficantes
pentecostais tocam o terror com o "bonde de Jesus". Maior preocupação
é o filho, estudante em Seropédica, onde milicianos cobram taxa para festas no
espaço universitário ou nos quintais particulares. Detalhe: o cobrador recolhe
a cota da milícia e a da polícia.
Na espoliação ultrajante espelhada numa
história individual transparece o cotidiano de 60% do território urbano.
Atingiu-se patamar catastrófico, não dá mais para encobrir a realidade com a
opção da "avestruz" carioca, que recomenda à vítima silenciar a
violência sofrida, "é feio".
Evolucionismo é evocação do positivismo para
sugerir a passagem do estado de cleptocracia (algo como Putin e oligarcas russos) ao de criminal country,
expressão americana para a disseminação do crime no corpo social, como células
cancerosas na metástase: um país de criminosos. O estado evolutivo final, o
humanismo positivista segundo Comte,
regrediu a uma pulsação teológica, mergulho de cabeça no atraso.
Já em sobressalto, fica-se sabendo da
vexatória leniência do STF com um "capo" da contravenção carioca. Mas
a apertada votação da Câmara sobre a prisão de mandante do assassinato de
Marielle ratifica o status de criminal country. Falou alto o medo da
"famiglia": inconcebível que 129 parlamentares sejam favoráveis à autoria da execução de uma vereadora em
exercício de mandato. Novamente se quebrou, por voto metafórico, uma placa com
o nome da morta. Só que desta vez a baixeza é federal.
Verdade.
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