Folha de S. Paulo
Antigo tribunal misturava poderes temporais
com administração de sacramentos, como confissões de pecados
O STF tem exibido aparências
"extrafederais". Sinal é a desconcertante visita do senador
Moro, em meio a processo de cassação eleitoral, a um magistrado do
Supremo. E precisamente a alguém que, aos olhos públicos, não parece
apreciá-lo. Inexiste, claro, qualquer impedimento legal para o encontro. O que
chama a atenção é o seu aparente caráter terapêutico no sentido americano do
"counseling", que comporta aconselhamento e orientações de conduta.
Extrafederalização, com certeza.
Ainda mais, o episódio evoca também uma observância eclesiástica do remoto século 12 italiano, atinente ao Tribunal das Almas. Era o tempo dos papas reis, que misturavam poderes temporais com administração de sacramentos, como confissões de pecados. Cabia ao tribunal ponderar a gravidade dos atos e conceder ou negar absolvições.
Destoa do cânone litúrgico a publicidade do
diálogo, o que não autoriza comparações rigorosas com contingências como a de
um encontro entre um magistrado e um senador que já teve pretensões ao papel de
Catão, o célebre questor romano, emblema de moralidade pública.
Mas uma analogia é justamente sugerida pela
publicação de trechos da conversa: afiando a língua, o ministro deixou escapar
que Moro e seu antigo parceiro da Lava Jato "roubavam
galinhas juntos". Em seguida, destravado, fez reparos a deslizes
processuais do ex-juiz e o aconselhou a estudar mais, fazendo bom proveito da
biblioteca do Senado. Uma correção pungente, o Tribunal das Almas redivivo.
Bizarro em todo esse episódio é o sinal de
uma plasticidade de imagem do STF que extravasa atribuições constitucionais.
Imagem, bem sabem os analistas da cultura, é hoje a linguagem privilegiada do
sujeito. Em sua dimensão eucarística e sacramental, ela substitui corpo e
sangue de fiéis, criando realidades próprias com um fundo relacional de
trânsito mais fácil que palavras.
No confuso cenário político nacional, a
imagem do Supremo oscila entre o de dispensador onipotente de punições ou
absolvições e o de zelador da Constituição. Mas, pelo visto, indo além, com
espírito moderador, também acolhe almas em apuros.
Em termos objetivos, o senador não foi pedir
nada a outro Poder, e sim a uma imagem de potência. Queria tão só contato,
proximidade com uma instância à qual já deve ter sonhado pertencer, mas acabou
aprendendo que identidade é algo que se faz e refaz por atos de destino: a
persona de Catão não lhe coube, a de senador oscila, a auto-imagem desmoronou.
Ainda assim escapou no tribunal eleitoral da
ex-república-de-curitiba. É que no expansivo ecossistema religioso da política
nacional, com cultos de devoção ao mal e o presidente da República apelando a
milagres, pode ter efeito mágico uma genuflexão no Tribunal das Almas.
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