domingo, 14 de abril de 2024

Muniz Sodré - O tribunal das almas

Folha de S. Paulo

Antigo tribunal misturava poderes temporais com administração de sacramentos, como confissões de pecados

O STF tem exibido aparências "extrafederais". Sinal é a desconcertante visita do senador Moro, em meio a processo de cassação eleitoral, a um magistrado do Supremo. E precisamente a alguém que, aos olhos públicos, não parece apreciá-lo. Inexiste, claro, qualquer impedimento legal para o encontro. O que chama a atenção é o seu aparente caráter terapêutico no sentido americano do "counseling", que comporta aconselhamento e orientações de conduta. Extrafederalização, com certeza.

Ainda mais, o episódio evoca também uma observância eclesiástica do remoto século 12 italiano, atinente ao Tribunal das Almas. Era o tempo dos papas reis, que misturavam poderes temporais com administração de sacramentos, como confissões de pecados. Cabia ao tribunal ponderar a gravidade dos atos e conceder ou negar absolvições.

Destoa do cânone litúrgico a publicidade do diálogo, o que não autoriza comparações rigorosas com contingências como a de um encontro entre um magistrado e um senador que já teve pretensões ao papel de Catão, o célebre questor romano, emblema de moralidade pública.

Mas uma analogia é justamente sugerida pela publicação de trechos da conversa: afiando a língua, o ministro deixou escapar que Moro e seu antigo parceiro da Lava Jato "roubavam galinhas juntos". Em seguida, destravado, fez reparos a deslizes processuais do ex-juiz e o aconselhou a estudar mais, fazendo bom proveito da biblioteca do Senado. Uma correção pungente, o Tribunal das Almas redivivo.

Bizarro em todo esse episódio é o sinal de uma plasticidade de imagem do STF que extravasa atribuições constitucionais. Imagem, bem sabem os analistas da cultura, é hoje a linguagem privilegiada do sujeito. Em sua dimensão eucarística e sacramental, ela substitui corpo e sangue de fiéis, criando realidades próprias com um fundo relacional de trânsito mais fácil que palavras.

No confuso cenário político nacional, a imagem do Supremo oscila entre o de dispensador onipotente de punições ou absolvições e o de zelador da Constituição. Mas, pelo visto, indo além, com espírito moderador, também acolhe almas em apuros.

Em termos objetivos, o senador não foi pedir nada a outro Poder, e sim a uma imagem de potência. Queria tão só contato, proximidade com uma instância à qual já deve ter sonhado pertencer, mas acabou aprendendo que identidade é algo que se faz e refaz por atos de destino: a persona de Catão não lhe coube, a de senador oscila, a auto-imagem desmoronou.

Ainda assim escapou no tribunal eleitoral da ex-república-de-curitiba. É que no expansivo ecossistema religioso da política nacional, com cultos de devoção ao mal e o presidente da República apelando a milagres, pode ter efeito mágico uma genuflexão no Tribunal das Almas.

 

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