Desarmonia entre Poderes é ameaça à democracia
Correio Braziliense
Administrar (Executivo), legislar (Congresso) e julgar (Supremo) são atribuições distintas e separadas dos Poderes da República, que precisam ser revigoradas sempre que houver a pretensão de se estabelecer um poder dominante sobre o outro
Montesquieu, no O Espírito das Leis, enunciou o princípio da separação entre os Poderes como um dos fundamentos da democracia, com seu sistema de freios e contrapesos (check and balances). Quando as funções do poder público são repartidas entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, a democracia impede que decisões autoritárias sejam adotadas, sem possibilidade de reversão. Isso possibilita um controle mais adequado da sociedade civil sobre o Estado.
Na Constituição de 1988, essa separação é muito relevante. Aparece em dispositivos como os vetos presidenciais a decisões do Congresso por estreita maioria, o impeachment do presidente da República por crime de responsabilidade e a forma como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são escolhidos, por indicação do presidente e homologação do Senado.
Entretanto, a Constituição de 1988 atribui ao Supremo o duplo papel de última instância do sistema judiciário e de Corte Constitucional, a qual cabe analisar a compatibilidade de atos normativos, leis e sentenças emanados pelos Três Poderes em relação à Constituição Federal. São as cláusulas pétreas enumeradas no art. 60, §2ª, incisos I e III, da Carta Magna — entre as quais, a forma federativa de Estado e a separação dos Poderes. Uma emenda constitucional que pretenda abolir tais institutos é inconstitucional na sua origem.
Desde as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito à Presidência, o STF está sob forte ataque. No governo passado, havia um projeto "iliberal" de poder, cujo êxito dependia da subordinação do Supremo ao Executivo. Seria o primeiro passo para um regime no qual o direito ao dissenso, o respeito às minorias e a alternância de poder deixariam de existir.
Administrar (Executivo), legislar (Congresso) e julgar (Supremo) são atribuições distintas e separadas dos Poderes da República, que precisam ser revigoradas sempre que houver a pretensão de se estabelecer um poder dominante sobre o outro. Não existe um poder moderador, o Supremo só tem o poder de revogar decisões dos demais Poderes quando há inconstitucionalidades e a democracia está ameaçada.
O polêmico inquérito das fake news, a cargo do ministro do STF Alexandre de Moraes, somente existe porque havia essa ameaça durante o governo Bolsonaro. Se ainda há dúvidas sobre a constitucionalidade de sua origem, sua existência foi legitimada pela tentativa de golpe de 8 de janeiro. Os episódios lamentáveis de vandalismo demonstraram, na prática, que havia uma ameaça não somente ao recém-empossado presidente Lula, mas também ao Legislativo e ao Judiciário, cujos palácios foram igualmente invadidos e depredados.
Os dois assuntos políticos em mais evidência na semana que passou têm a ver com o equilíbrio entre os Poderes. A Câmara dos Deputados aprovou a manutenção da prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado pela Polícia Federal de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, mas houve risco de que a decisão da Primeira Turma do Supremo fosse revogada. Seria uma lamentável instrumentalização da Câmara para confrontar o Supremo num caso criminal, que representa o que há de mais abjeto, covarde e criminoso na política: a execução de adversários políticos.
O outro episódio é a polêmica entre o bilionário sul-africano Elon Musk, dono da Tesla, da SpaceX e do X (ex-Twitter), e ministro do Supremo, em razão de decisões judiciais no âmbito do inquérito das Fake News com objetivo de barrar o incitamento ao ódio e atentados contra a democracia. A virulência dos ataques do empresário à Corte Constitucional e seu apoio a articulações antidemocráticas no Brasil reforçam a necessidade de que os Poderes da República mantenham relações de equilíbrio, harmonia e independência entre si.
O Globo
Alívio trazido por MP do governo à conta de
luz será momentâneo, mas custo perdurará por vários anos
Preocupado com a alta nas contas de luz, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta semana Medida Provisória (MP) com o objetivo de reduzir as tarifas entre 3,5% e 5% em todo o país. A queda será financiada por meio de um mecanismo mirabolante: o governo quitará empréstimos contraídos pelas distribuidoras durante a pandemia — quando as tarifas ficaram congeladas — e na escassez hídrica de 2021 — quando foi necessário contratar a geração mais cara das usinas térmicas —, usando recursos previstos na privatização da Eletrobras que serão antecipados ao Tesouro. De acordo com o governo, o alívio às distribuidoras permitirá o benefício ao consumidor. Mas não acaba aí.
Ao mesmo tempo, atendendo à pressão de
governadores, a MP renova por mais 36 meses subsídios de R$ 4 bilhões anuais a
usinas eólicas e solares que já deveriam ter sido encerrados, mas foram
prorrogados no governo Jair Bolsonaro. Quanto mais as usinas se beneficiam
dessa vantagem, maior o buraco financeiro provocado pelo uso da rede de
distribuição. Os escalados para pagar a conta são os consumidores. Em resumo: o
alívio das tarifas em 2024 será seguido por contas mais caras nos anos
seguintes. Não faz sentido.
Os defensores argumentam que o incentivo é
necessário para alavancar a produção de energia renovável. Falam em mais 30
gigawatts disponíveis no país. É uma visão problemática por vários motivos.
Primeiro, usinas eólicas e solares não dependem mais de ajuda para se tornar
financeiramente viáveis. Segundo, o subsídio à energia renovável — R$ 10
bilhões só neste ano — já responde por quase 14% da tarifa, segundo Edvaldo
Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Terceiro,
há sobra contratada na geração até pelo menos 2032, e o consumo tem crescido
bem menos que o acréscimo das fontes renováveis.
Por fim, os desequilíbrios trazidos ao
sistema pelo incentivo a eólicas e solares (em geral distantes dos centros de
consumo) trarão mais custos em transmissão e forçarão o uso (mais caro) das
térmicas quando elas não estiverem disponíveis. O resultado, não é difícil
entender, será energia mais cara.
Volta e meia transitam pelo Congresso
propostas que encarecem a conta de luz. A mais recente é o aumento na
Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos, dinheiro
destinado a municípios onde há hidrelétricas, usado no monitoramento dos reservatórios.
Calcula-se que os encargos aumentarão 40%, custo que cedo ou tarde chegará aos
domicílios. Mesmo que seja um gasto justificável, deveria haver mais
transparência.
O que está em jogo nos ambientes opacos de
Brasília é a garantia de lucros a empresários do setor, incluindo fabricantes
de equipamentos, à custa da conta paga por todos, sobretudo os mais pobres. A
MP guarda semelhança com a intervenção desastrada da então presidente Dilma
Rousseff no setor elétrico em 2012. O objetivo era o mesmo: baixar a conta de
luz. Num primeiro momento, houve queda de 20%. Dois anos depois, alta de 25%.
Em 2018, a conta de luz era 50% mais cara que em janeiro de 2013, descontada a
inflação. Se a MP for aprovada, o custo dos subsídios durará anos, enquanto o
alívio será passageiro. Para promover queda duradoura nas tarifas, o governo
deveria reduzir a complexidade do sistema elétrico brasileiro, pródigo em
subsídios. Acabar com aqueles que não são mais necessários é a prioridade.
Sucessivos recordes de temperatura põem
planeta diante do imponderável
O Globo
Março foi o décimo mês consecutivo de quebra
de barreiras. Cientistas questionam se tendência é irreversível
Em maio do ano passado, ao fazer estimativas
até 2027, a Organização Meteorológica Mundial previu que a temperatura global
atingiria níveis recordes no período. Não demorou para a previsão ser
confirmada. O observatório europeu Copernicus (C3S) constatou que, de abril de
2023 a março deste ano, transcorreram os 12 meses mais quentes da História. A
temperatura de março deste ano foi a mais alta para o mês, o décimo consecutivo
com quebra de recorde de calor.
Nos 12 meses anteriores, a temperatura subiu
1,58 °C acima da média verificada na era pré-industrial (1850-1900),
ultrapassando o limite de 1,5 °C estabelecido pelo Acordo de Paris para este
século como patamar minimamente seguro para evitar eventos catastróficos. Em um
dia, pela primeira vez a temperatura global ficou 2 °C acima da base de
comparação. E julho de 2023 foi, tudo indica, o mês mais quente em 120 mil
anos. Ainda em 2023, a temperatura global ficou o maior número de vezes acima
de 1,5 °C além dos patamares do fim do século XIX.
A quebra dessas barreiras chama mais uma vez
a atenção para a necessidade de acelerar os cortes nas emissões de gases de
efeito estufa — contribuição dada pela espécie humana ao aquecimento global.
Como a temperatura oscila, é natural que ela volte a ficar abaixo do limite de
1,5 °C. Ao acompanhar a tendência dos termômetros, porém, a tendência de alta é
nítida. “Ver registros como esse mês a mês nos mostra que realmente nosso clima
está mudando rapidamente”, afirmou Samantha Burgess , vice-diretora do C3S.
Os efeitos da mudança são sentidos em todos
os continentes. Uma seca causou um número nunca visto de incêndios na Amazônia
venezuelana. No sul da África, a destruição de plantações afetou de maneira
drástica a oferta de alimentos. Nos Estados Unidos, a Administração Nacional
Oceânica e Atmosférica (NOAA) registrou, em 2023, 25 eventos extremos
associados ao aquecimento global, com prejuízos superiores a US$ 1 bilhão. A
frequência de ondas de calor aumentou. Há meio século eram duas por ano, em
2023 foram seis. No Hemisfério Sul, o Brasil experimenta o mesmo fenômeno.
Incêndios florestais no Canadá contaminaram o
ar no Meio-Oeste e no Nordeste dos Estados Unidos de forma inédita. Em junho, a
fumaça cobriu Nova York, obrigando o uso de máscaras e interrompendo o tráfego
aéreo. Na Califórnia, houve 12 inundações causadas por fortes temporais, com
deslizamentos e mortes. Um volume inesperado de neve cobriu as montanhas. No
Brasil, chuvas torrenciais atingiram do Rio Grande do Sul a estados do
Nordeste, passando pela Região Serrana do Rio de Janeiro.
Empresas e governos precisam estar preparados
para tais ocorrências. Assim como é vital acelerar os cortes nas emissões de
carbono. A dúvida entre os cientistas diante dos sucessivos recordes de
temperatura é se há chance de reviravolta ou se a dinâmica de aquecimento
entrou em rota de alta irreversível, com consequências dramáticas para as metas
do Acordo de Paris.
Ampliar funcionalismo é perpetuar distorções
Folha de S. Paulo
Governo ensaia expansão de quadro de pessoal
custoso, sem incentivo à eficiência, e rejeita reformas por corporativismo
Governos do PT ampliam o quadro
de servidores, e os demais o enxugam. Essa tem sido a política de recursos
humanos do Executivo federal nas últimas três décadas, no mais das vezes sem
diagnósticos claros sobre as reais necessidades da máquina pública.
As administrações petistas se pautam por
afinidades sindicalistas e pela crença nas virtudes da expansão do Estado. As
outras, em geral, buscam conter a segunda maior despesa não financeira da
União, atrás apenas da Previdência.
O gasto com o funcionalismo federal somou R$
363,7 bilhões no ano passado, aí incluídos inativos e pensionistas, ou o
equivalente a 3,4% do Produto Interno Bruto, cifra também registrada em 2022.
Trata-se do patamar mais baixo da série
histórica do Tesouro, iniciada em 1997, o que se deve principalmente a um
processo de ajuste forçado sob Jair Bolsonaro (PL) —cujo governo, além de
restringir contratações, segurou reajustes salariais, embora abrindo custosas
exceções para os militares.
Agora, no terceiro mandato de Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT), ensaia-se
novo ciclo de alta do quadro, hoje de 443,5 mil civis no Executivo,
desta vez em condições orçamentárias muito piores que as das primeiras gestões
do partido. Já as múltiplas distorções do serviço público seguem quase
intocadas.
De mais importante, reformas previdenciárias
reduziram privilégios indefensáveis dos servidores, o que torna as contratações
de agora menos dispendiosas no futuro.
No entanto permanece o alcance
excessivo e disfuncional da estabilidade no emprego, que
desincentiva enormemente a produtividade dos funcionários. Nem mesmo a
possibilidade de demissão por mau desempenho, incluída na Constituição pela
longínqua reforma administrativa de 1998, foi regulamentada até hoje.
O governo petista, previsivelmente, recusa a
revisão da estabilidade, que no entender desta Folha deveria se limitar às
carreiras típicas de Estado. Tampouco há disposição para aprovar reduções de
jornadas de trabalho e remunerações, consideradas inconstitucionais numa
decisão corporativista do Supremo Tribunal Federal.
Outras medidas importantes não dependem de
mudança na Carta. Entre elas, fazer valer o teto salarial, driblado por
inúmeros penduricalhos sobretudo no Judiciário; baixar os salários iniciais,
hoje excessivos e próximos aos do topo; diminuir o número de carreiras em prol
da gestão de pessoal.
Tais providências decerto têm efeitos mais de
longo prazo que imediatos —deveriam ter sido adotadas há muito tempo para um
serviço menos custoso e mais eficiente. As ameaças de
greve com que Lula lida no momento são somente um sintoma da
insustentabilidade do cenário atual.
Libertário liberticida
Folha de S. Paulo
Elon Musk, amigo de tiranos, não tem como
posar de paladino da livre expressão
A causa essencial da liberdade de expressão
ganhou com o empresário Elon Musk um
falso paladino, engajado em um bate-boca
oportunista com o Judiciário brasileiro.
Não é fácil, sem dúvida, ignorar uma
personalidade pública com o poder de Musk. À parte ser a segunda pessoa mais
rica do mundo, maneja com despudor sua plataforma na internet.
A incoerência de seus queixumes em favor da
liberdade de expressão é patente. Foi depois de se tornar proprietário da
rede Twitter,
rebatizada de X, que ela deixou de publicar em 2022 quantas e quais contas
sofreram remoção de conteúdo. A transparência que cobra dos outros não pratica
em casa.
A empáfia do empresário quando trata com
bravatas a democracia brasileira se reduz a subserviência
interessada ante autoridades de outros países. Como a China,
que visitou em 2023 e cobriu de elogios, embora lá o X esteja banido e inexista
liberdade de expressão.
Na Índia,
Musk agachou-se diante de Narendra Modi e removeu links para documentário sobre
a omissão do hoje premiê perante massacre de 2002, em Gujarat, quando Modi era
governador. Na Turquia,
restringiu alcance de postagens por ordem do autocrata Recep Erdogan, na
eleição de 2023.
A fera hipócrita defensora das liberdades
também se converte num dócil bichano nas relações com a sanguinária ditadura
saudita. Musk fala grosso nas democracias, inclusive na norte-americana, mas
coloca o rabo entre as pernas diante de tiranos.
O empresário posa agora em
fotos aos gracejos com o presidente argentino, Javier Milei, outro
integrante dileto do clube dos populistas da direita, como Jair Bolsonaro (PL)
e Donald Trump. Flertou com os lunáticos que se opuseram à vacinação contra a
Covid. Falta somente abraçar a causa terraplanista para completar o perfil do
idiota contemporâneo.
Esse é o suposto arauto da liberdade incensado pela direita radical. Um visionário que fez fama e dinheiro investindo em inovação, mas que tem se alinhado aos setores do extremismo regressista.
‘Saidinha’ não é favor aos presos
O Estado de S. Paulo
Lula acerta ao vetar parcialmente o projeto
que restringe a concessão do benefício. Caso o Congresso derrube o veto, como é
quase certo, terá sido por razões políticas, e não técnicas
O presidente Lula da Silva manifestou
respeito à Constituição com seu veto parcial ao Projeto de Lei (PL) 2.253/2022,
que restringe drasticamente as saídas temporárias de presos em regime
semiaberto, as chamadas “saidinhas”. Seguindo a orientação do ministro da
Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, Lula vetou o ponto fulcral do
projeto: a proibição imposta àqueles presos de visitar suas famílias durante as
“saidinhas”. Há poucas semanas, o Congresso aprovou a quase extinção da
política penal, mantendo-a apenas para os apenados que estejam cursando os
ensinos supletivo, médio, superior ou técnico-profissionalizante.
Em Brasília, é dado como certo que o veto do
presidente da República será derrubado pelo Congresso em questão de pouco
tempo, como alguns líderes partidários já indicaram à imprensa. Mas a
derrubada, caso seja confirmada, não se dará pela fragilidade técnica da
decisão de Lula, e sim por questões eminentemente políticas. A revisão
draconiana da política de “saidinhas” neste ano eleitoral decorre do previsível
interesse de parlamentares das mais diversas afiliações ideológicas de atender
a um legítimo anseio da sociedade por mais segurança pública. Em muitas cidades
Brasil afora, os cidadãos vivem com medo. E o medo, como se sabe, é um dos
sentimentos que mais influenciam o voto.
Nesse sentido, deve-se reconhecer que a
decisão política do Congresso de rever a concessão das “saidinhas” é
rigorosamente legítima. Isso não significa dizer, porém, que ela tenha sido
correta, tampouco a mais indicada para enfrentar com boa técnica os muitos
problemas de segurança pública que atormentam milhões de brasileiros. Crimes
brutais cometidos por apenados durante as “saidinhas” podem gerar justa revolta
nos cidadãos, além de grande sofrimento para as vítimas. Mas orientar a
definição de políticas públicas a partir de casos isolados jamais rendeu bons
resultados.
As evidências de que uma ínfima minoria de
presos comete crimes durante as “saidinhas” indicam que o corte drástico do
benefício terá escasso impacto na percepção de segurança da sociedade – se é
que terá algum resultado prático. Já para a grande maioria dos presos que hoje
podem visitar seus familiares durante o cumprimento da pena, os benefícios são
comprovadamente eficazes no sentido da ressocialização.
É preciso ter claro que as “saidinhas”, ao
contrário do discurso político dos que defendem sua extinção, estão longe de
ser favores prestados aos presos. Como uma das políticas públicas voltadas à
ressocialização, as “saidinhas” se prestam, antes de tudo, a resguardar a
própria sociedade. Afinal, a Constituição veda como cláusula pétrea a aplicação
de penas de morte e de caráter perpétuo, de modo que, cedo ou tarde, os presos
voltarão ao convívio social. Como já dissemos, “que preso será esse e com que espírito
voltará a circular pelas ruas, depende de quanto o Estado está disposto a lhe
estender a mão para reconduzi-lo para uma vida digna” (ver Limitação das
‘saidinhas’ não é panaceia , de 25/2/2024).
Lula deu sinais de que pretende seguir nesse
bom caminho, inclusive manifestando coragem política ao assumir o risco de
fazer o que acredita ser o certo – tanto do ponto de vista humanitário como
constitucional – e contrariar uma decisão do Congresso, sabendo de antemão que
não é baixa a probabilidade de sair derrotado.
Em entrevista coletiva para anunciar o veto
parcial, Lewandowski afirmou que proibir os presos em regime semiaberto de
visitar suas famílias “atenta contra valores fundamentais da Constituição,
contra os princípios da dignidade da pessoa humana e da individualização da
pena”. É disso que se trata. A decisão do Poder Executivo de vetar parcialmente
o PL das “saidinhas” aponta para a observância de valores civilizatórios
fundamentais, valores estes que há mais de 35 anos foram consagrados pela
“Constituição Cidadã”. Nada além disso.
Idealmente, as “saidinhas” deveriam ter sido
mantidas, mas não sem uma rigorosa revisão dos critérios para concessão do
benefício.
‘Jeitinho’ é incompatível com a segurança
jurídica
O Estado de S. Paulo
Em vez de rejeitar a investida de Lula para
retomar o poder estatal na Eletrobras, STF dá mais prazo para uma ‘conciliação’
que desmoraliza contratos firmados conforme o que manda a lei
No dia 4 passado, o ministro Kassio Nunes
Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu dar mais 90 dias para a
conclusão de uma negociação entre governo federal e Eletrobras, na qual a União
reivindica maior poder de decisão na empresa, proporcional aos 42% que detém do
capital. Se alguém quiser escrever um tratado sobre as razões pelas quais nosso
risco país é altíssimo, o caso mencionado acima deve estar em destaque, no
capítulo sobre insegurança jurídica e o descrédito de contratos firmados conforme
o que manda a lei.
Para começo de conversa, a petição do
governo, com a assinatura do presidente Lula da Silva, encaminhada ao Supremo
pela Advocacia-Geral da União (AGU) em maio do ano passado, deveria ter sido
rejeitada logo de saída. Não se trata de negar o mérito do pleito, e sim de
reconhecer que a questão já está amplamente pacificada.
Recordemos: a desestatização da Eletrobras
foi aprovada em 2021 pelo Congresso, por meio da Lei 14.182/2021, que permitia
a entrada de investidores privados na companhia. Segundo essa lei, nenhum dos
acionistas poderia ter mais que 10% das ações com direito a voto, no modelo
conhecido como corporation.
Limitar o poder de voto numa companhia com
capital pulverizado e sem controlador é uma situação comum. Na Embraer, por
exemplo, o limite é de 5%, seja qual for a participação acionária individual.
Essa limitação foi uma das medidas que garantiram o interesse na compra de
ações da Eletrobras em seu processo de capitalização. Hoje, a companhia tem em
torno de 200 mil acionistas, de todos os portes.
Mas Lula da Silva – aquele segundo quem “as
empresas brasileiras, bancos brasileiros, têm que pensar primeiro neste país
para depois pensar nos seus lucros, nos seus acionistas” – nunca se conformou
com a perda de poder de decisão sobre a Eletrobras, cuja privatização foi por
ele classificada de “crime de lesa-pátria”.
O esperneio judicial da esquerda contra a
privatização da Eletrobras vem desde pelo menos 2018, mas as sucessivas
derrotas em tribunais, inclusive no Supremo, já deveriam ter deixado claro que
se tratava de um processo regular e legítimo. Se isso não bastasse, a
privatização foi avalizada pelo Congresso, o que deveria ter dado o assunto por
encerrado. Mas o lulopetismo é incansável: de volta ao poder, Lula mandou a AGU
questionar no Supremo a redução da influência do governo na Eletrobras.
O ministro Nunes Marques, relator da ação,
deveria tê-la rejeitado liminarmente porque questionava o que se entende por
“ato jurídico perfeito”, isto é, que foi consumado segundo a lei vigente e
produziu efeitos. Em vez disso, Nunes Marques optou pelo “jeitinho”: anunciando
que adotaria um procedimento abreviado para remeter o pleito à apreciação do
plenário do STF – ao menos, eximiu-se de decisão monocrática e arbitrária, tão
em voga na Corte nos últimos tempos – acabou remoendo o caso por meses até encaminhá-lo,
em dezembro do ano passado, à Câmara de Conciliação e Arbitragem da
Administração Federal, com prazo de 90 dias para uma solução consensual. Esse
prazo agora foi prorrogado – como se o tempo tivesse o condão de tornar
legítima a teimosia do governo. Ora, contratos considerados perfeitos existem
para serem cumpridos, e não modificados conforme os desejos do presidente da
República ou de um partido político, mas o ministro do STF não levou isso em
conta.
O resultado prático é a desmoralização dos
contratos firmados com o poder público. Não é à toa que investidores cobram do
Brasil mais garantias e retornos mais robustos quando são chamados a participar
de projetos que envolvem o governo. Ou seja: gasta-se mais dinheiro do
contribuinte para compensar a insegurança jurídica. É claro que para Lula isso
não tem nem nunca teve importância, mas o Supremo deveria ser mais assertivo na
defesa dos contratos.
Às cegas diante da epidemia
O Estado de S. Paulo
Saúde corta verba de propaganda contra a
dengue quando a população teria de se preparar
Na contramão dos alertas sobre a escalada da
dengue no País, o Ministério da Saúde enxugou para R$ 13,1 milhões a verba para
campanhas publicitárias de conscientização e prevenção da doença ao longo de
2023. Não se sabe exatamente quanto dessa cifra sobrou para o fim daquele ano,
quando a sensibilização massiva dos cidadãos para impedir a proliferação do
mosquito Aedes aegypti seria indispensável para a contenção da epidemia em
2024. Sabe-se, isto sim, que o total foi bem menor do que o destinado nos últimos
anos da gestão de Jair Bolsonaro, notória pelo negacionismo em questões de
saúde pública, e isso num momento em que a epidemia já havia sido amplamente
anunciada.
Com base em dados do Sistema de Comunicação
de Governo do Poder Executivo Federal (Sicom), reportagem do Estadão apontou a
redução de 58,5% nos recursos para a campanha contra a dengue em 2023, em
comparação com o ano anterior. Houve correta prioridade da ministra da Saúde,
Nísia Trindade, em investir em propagandas de estímulo à vacinação, mas, do
ponto de vista sanitário, causa estranheza o critério da pasta de conceder mais
recursos à comunicação sobre o programa Farmácia Popular do que ao combate a uma
epidemia aguardada a cada verão.
No segundo semestre de 2023, o Ministério da
Saúde dispunha de argumentos sólidos e tempo hábil para solicitar verba
extraordinária para uma vigorosa campanha de prevenção da epidemia. Orientar
insistentemente a população a destruir potenciais focos de proliferação do
mosquito da dengue, entre outras medidas, não seria trivial diante do contexto
de escassez de imunizantes. Se pediu a verba ou se foi negada pela equipe
econômica do governo, a pasta não informou até o momento. Certo é que não houve
disseminação exaustiva de peças publicitárias para mobilizar os brasileiros
antes de a epidemia consolidar-se no País.
Causa impressão a omissão do Ministério da
Saúde mesmo depois de ter reconhecido, em nota de novembro de 2023, a
“possibilidade de uma epidemia (de dengue) maiores proporções que as
documentadas na série histórica do País”. O texto reproduziu alertas emitidos
pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). A pasta estava ciente, na ocasião, sobre a estimativa da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) de um recorde de 2,2 milhões de infectados neste ano –
já defasado pelos atuais 3 milhões de prováveis casos da doença.
Não se pode atribuir o quadro preocupante da epidemia no Brasil exclusivamente à falha de comunicação que levou a população a ser pega de calças curtas pela dengue. Tampouco ao inexplicável fato de a secretária responsável pelo enfrentamento à dengue, Ethel Maciel, ter saído de férias em janeiro, em plena crise sanitária. Mas é preciso considerar o indiscutível impacto de tais negligências e cobrar a devida responsabilidade do Ministério da Saúde.
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