sexta-feira, 19 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Crise fiscal exige plano de corte de gastos

O Globo

Alerta do FMI é mais uma prova do erro cometido nas políticas de salário mínimo e vínculos orçamentários

O último relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre políticas fiscais em todo o mundo aumentou a estimativa de déficit nas contas públicas brasileiras em 2024 de 0,2% para 0,6% do PIB (mais longe do objetivo oficial: zero). Elaborado antes de o governo afrouxar as metas dos próximos anos, o estudo revela a necessidade de mais esforço para evitar o descontrole na dívida pública. Em vez disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trocou as metas de superávit para 2025 (de 0,5% para zero) e 2026 (de 1% para 0,25%). A impressão é que abandonou qualquer plano de ajuste fiscal.

Um governo comprometido com a queda do endividamento público, uma das raízes do crescimento baixo, concentraria esforços em cortar ou, no mínimo, diminuir o ritmo de alta dos gastos. Não é a tônica da atual gestão. Os primeiros sinais da falta de compromisso com a responsabilidade fiscal foram dados antes mesmo da posse. A PEC da Transição, aprovada em dezembro de 2022, aumentou as despesas, a pretexto de cumprir promessas de campanha, e previu substituir o teto de gastos por uma nova regra.

Em agosto do ano passado, a mesma lei complementar que criou o novo arcabouço fiscal voltou a indexar os gastos mínimos com saúde e educação ao crescimento da receita (a regra válida desde 2016 era correção pela inflação). Como o governo escolheu a estratégia de aumentar a arrecadação para equilibrar as contas, as vinculações de saúde e educação aumentaram automaticamente o gasto previsto para as duas áreas, enfraquecendo o esforço de ajuste. Ainda tramita no Congresso a ideia sem nexo de criar mais um vínculo orçamentário para despesas com Defesa.

Noutra frente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu, e o Congresso aprovou, uma nova política para o salário mínimo. O piso nacional passou a contar com a possibilidade de aumentos acima da inflação garantidos por lei (reajustes levam em conta a inflação do ano anterior, mais o crescimento do PIB de dois anos antes). Só o aumento previsto para 2025 terá impacto de R$ 36 bilhões nas despesas do governo, sobretudo em gastos com benefícios previdenciários indexados ao mínimo.

Olhando para a frente, nada sugere mudança de atitude. À medida que as demandas surgirem, a tendência do Congresso será abrir exceções no esforço fiscal. Foi o que aconteceu com o programa Pé-de-Meia. Para estimular o ensino médio, o governo passou a conceder bolsas de estudos. Executivo e Legislativo não negam a disposição de gastar R$ 7,1 bilhões por ano com o programa, mas decidiram deixar a quantia fora da meta fiscal, como se isso fizesse a despesa sumir.

Os brasileiros merecem mais na saúde e na educação, e o Pé-de-Meia, embora precise ser testado, parece ter méritos. Mas defensores do mantra “gasto é vida” qualificam quem exige responsabilidade fiscal como inimigo dos pobres. Nada mais absurdo. Se gastar irresponsavelmente fosse solução para a pobreza, o Brasil já seria um país rico. Para alocar recursos ao que é prioritário, é preciso tirar de outro lugar. Políticas populistas aumentam a dívida pública, contribuem para a alta dos juros, inibem investimentos e reduzem a possibilidade de gerar mais emprego e renda. A saída para o Brasil quebrar o histórico de índices sociais sofríveis é o crescimento sustentado da economia. Fingir que a dívida não é problema só atrasa qualquer solução.

PEC ressuscitando reajuste automático para juízes e promotores é indefensável

O Globo

Em momento de crise fiscal, plenário do Senado tem dever moral de rejeitar a benesse descabida

Não há justificativa defensável para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado ter aprovado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, para beneficiar juízes e promotores, promove a ressurreição do quinquênio, aumento automático extinto há 18 anos. A PEC, desengavetada pelo presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), beneficia duas das categorias mais privilegiadas no serviço público com reajustes salariais de 5% a cada período de cinco anos, chamados Adicionais por Tempo de Serviço (ATS), pagos sem nenhuma relação com o desempenho do servidor. A decisão da CCJ, que será encaminhada ao plenário, reforça uma visão cartorial do serviço público, avessa ao mérito.

Juízes e promotores estão entre as categorias mais bem remuneradas no setor público, com um salário médio que os coloca entre os 2% de maior renda no país. Os juízes contam ainda com privilégios já extintos em outras áreas, como férias de 60 dias, licenças-prêmio, aposentadorias compulsórias e outras benesses. Podem ainda receber em dinheiro férias não usufruídas, o que lhes garante volta e meia somas inimagináveis para outros servidores ou empregados no setor privado.

Como já aconteceu outras vezes em que corporações do funcionalismo pressionaram o Congresso na defesa de seus interesses, a PEC tem recebido emendas para ampliar os beneficiados, abrangendo aposentados e pensionistas. O relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), acolheu pedido para incluir integrantes da Advocacia Pública da União, dos estados e do Distrito Federal. Também deve levar o reajuste automático quem segue carreira jurídica em todos os Poderes e na Defensoria Pública. Do jeito como são as coisas em Brasília, não se pode descartar o pagamento retroativo das benesses.

Apenas Judiciário e Ministério Público consomem por ano aproximadamente 1,8% do PIB, 11 vezes o custo de instituições similares na Espanha, dez vezes o na Argentina e nove vezes o nos Estados Unidos. Não há paralelo no planeta para a prodigalidade com que o Brasil trata seu Judiciário, que não é propriamente conhecido pela eficiência.

De acordo com o Centro de Liderança Pública (CLP), o impacto da medida representaria neste ano um gasto de R$ 1,8 bilhão. O Ministério da Fazenda estima, ao todo, uma despesa anual adicional de R$ 42 bilhões se todas as categorias relacionadas ao Judiciário também forem beneficiadas. Como costuma acontecer nessas ocasiões, o aumento para uma ou duas puxa a fila de pedidos de reajuste. A decisão da CCJ do Senado abre a porteira para mais pressão do funcionalismo federal sobre o governo.

A tentativa de ressuscitar o quinquênio coincide com o afrouxamento das metas fiscais pelo governo. Pode servir de estímulo a outros desvarios do tipo. Cabe ao plenário do Senado e, em último caso, à Câmara repelir a investida. No mínimo, por um dever moral.

Poderes estão fora de órbita no Brasil

Folha de S. Paulo

Judiciário legisla, Congresso sequestra Orçamento, Executivo ataca equilíbrio fiscal; urge corrigir essa anomalia

O presidente da Câmara dos DeputadosArthur Lira (PP-AL), criticou o ministro responsável pela articulação política do governo, Alexandre Padilha (PT), e teve um primo demitido de uma prebenda federal. O Planalto dobrou a aposta no ministro, e o centrão trama maneiras de retaliar o Executivo.

Lira também se incomodou com mais uma provável reviravolta em entendimentos do Supremo Tribunal Federal —que mudou de ideia e se inclina a ampliar sua alçada sobre autoridades com foro especial— e ameaçou criar uma CPI para investigar supostos abusos em decisões de ministros da corte.

Reagindo a uma investida do STF em temas legislativos, o Senado aprovou emenda à Constituição que, ao estilo das nações mais regressistas do planeta, criminaliza o porte e a posse de drogas.

Um grupo de juízes da corte manifestou sua preocupação com a saliência do Congresso num jantar em "petit comité" com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Um dos comensais, Alexandre de Moraesentabulou depois conversas diretas com Lira e o chefe do SenadoRodrigo Pacheco (PSD-MG).

Como costuma ocorrer em Brasília, o que inicialmente parece configurar uma "crise entre os Poderes" caminha depressa para a prática secular do acordão entre poderosos. O objetivo, no fim das contas, não é mais que acomodar interesses mesquinhos.

Passa como se fosse virtude a doença crônica que acomete a tríade dos Poderes no Brasil. Não é normal que juízes da corte suprema dediquem o seu tempo a tricotagens com autoridades que nomeiam, controlam e aprovam magistrados constitucionais.

Mas esses convescotes são frequentes, sintoma epidérmico da falta de respeito às fronteiras institucionais em Brasília.

Nessa geleia geral em que se confundem os papéis, não constitui surpresa que juízes se intrometam corriqueiramente em assuntos do Legislativo e do Executivo, como ocorre agora no julgamento sobre descriminalização dos usuários de maconha.

Também o Congresso conspurca fronteiras. Absorveu ao longo dos últimos anos a prerrogativa, contraditória com o presidencialismo, de distribuir, sob critérios paroquiais e eleitoreiros, uma montanha de recursos públicos sob a forma de emendas parlamentares que distorcem o jogo político.

Já o Executivo abriu mão de ser o fiador do equilíbrio orçamentário de longo prazo e joga lenha na fornalha da gastança. O equilíbrio orçamentário caminha ao lado da estabilidade política.

Os Poderes estão fora de órbita no Brasil. Como corrigir essa anomalia deveria ser uma prioridade da agenda nacional.

Tropeços com vacinas

Folha de S. Paulo

Governo não pode se eximir da responsabilidade por falhas contra Covid e dengue

O sistema de vacinação no Brasil, que já foi exemplo para o mundo, enfrenta percalços no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A má nova mais recente diz respeito à aquisição de vacinas atualizadas contra a Covid-19. Em dezembro, a Anvisa concedeu registro para imunizante da Pfizer específico para a variante XBB. Entretanto, quatro meses depois, a compra não foi concluída.

A campanha de vacinação, que deveria estar em curso, ficou para maio. Ao longo de 2023, o governo só adquiriu doses da Coronavac. A recomendação técnica era aguardar as vacinas de mRNA atualizadas da Pfizer e da Moderna —o registro desta só veio em março.

Atrasou, com isso, o pregão entre as duas concorrentes. Mas nem tudo que é explicável é justificável, especialmente no que toca à saúde da população. O bom gestor precisa antecipar-se a possíveis entraves. Problema similar deu-se na atual epidemia de dengue.

Ministério da Saúde não agilizou a burocracia para a compra do imunizante Qdenga nem preparou a infraestrutura do sistema de saúde para a alta de casos —que havia sido projetada pela OMS no início de 2023 divido à mudança climática e ao fenômeno El Niño.

Em quatro meses, a doença tirou a vida de 1.116 brasileiros, ante 1.094 em todo o ano passado.

Ademais, a vacinação com a Qdenga obteve baixo comparecimento, mesmo limitada à coorte de 10-14 anos. Na quarta-feira (17), o Ministério da Saúde emitiu nota permitindo inocular pessoas de 4 a 59 anos, como paliativo para não desperdiçar imunizantes com vencimento no fim deste mês.

Por óbvio, o discurso antivacina de Jair Bolsonaro (PL) foi um dos vários descalabros provocados pelo seu governo na área da saúde. Mas o PT já está no poder há 16 meses, e a pasta chefiada por Nísia Trindade não pode mais escorar-se nos desmandos do passado para isentar-se de responsabilidades.

Também cabe assinalar que as pressões políticas do Congresso contra a ministra têm pouco a ver com o bem-estar da população e muito com o apetite fisiológico de parlamentares do centrão pelo gordo orçamento da Saúde.

Avança a PEC lesa-sociedade

O Estado de S. Paulo

Ao aprovar volta do quinquênio para casta do funcionalismo, CCJ do Senado vira as costas para o País e debocha das carências de milhões de brasileiros privados de uma vida digna

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que, obviamente, deveria zelar pela higidez constitucional das matérias que aprecia, acaba de avalizar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que atenta contra um dos princípios mais comezinhos do regime republicano inscrito na Lei Maior: a igualdade de todos perante a lei, sem privilégios de qualquer natureza. Trata-se da PEC 10/2023, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), a fim de resgatar a excrescência do quinquênio – um aumento automático de 5% nos salários de algumas categorias do serviço público a cada cinco anos de trabalho.

A PEC 10/2023 é degenerada na origem. A concessão dessa gratificação salarial cumulativa aos servidores das chamadas carreiras jurídicas – que já compõem, é bom lembrar, a elite do funcionalismo no Brasil – é mais um privilégio absolutamente incompatível com a noção mais elementar que alguém possa ter de República. Ademais, está-se diante de uma imoralidade em um país onde metade da população ainda não tem acesso a esgoto sanitário em pleno século 21 e onde quase metade das crianças vive em situação de pobreza, condenadas, portanto, a um futuro nada auspicioso.

Porém, mesmo que o Brasil fosse um país rico e a maioria de sua população desfrutasse de uma qualidade de vida de país nórdico, o pagamento de quinquênio para uma casta de servidores – magistrados, membros do Ministério Público, da Advocacia Pública da União, Estados e municípios, delegados da Polícia Federal e servidores dos Tribunais de Contas – seguiria como o acinte à moralidade pública que é. Ao chancelar essa PEC lesa-sociedade, que seguiu para o plenário, a CCJ do Senado virou as costas para o País e debochou das carências de milhões de brasileiros privados de uma vida digna.

O nível da discussão na CCJ demonstrou que seus membros parecem crer que o Poder Legislativo por vezes deve trabalhar para colocar o Estado a serviço da casta de servidores, e não da sociedade. O relator da PEC 10/2023 no colegiado, senador Eduardo Gomes (PL-TO), chegou ao cinismo, não há outra maneira de dizê-lo, ao defender a volta do quinquênio. “A gente precisa gastar melhor o dinheiro público”, afirmou o sr. Gomes, “e talvez gastar melhor signifique gastar com os bons funcionários públicos.”

Além de cínico, o argumento do relator é falacioso. Afinal, o que os servidores das carreiras jurídicas terão de fazer para merecer o incremento de 5% em seus vencimentos a cada cinco anos? Rigorosamente nada. Ao que parece, o único requisito é ter sido aprovado em concurso público. E não se pode nem dizer que eles deverão permanecer na carreira, pois o quinquênio também valerá, caso a PEC seja promulgada, para os servidores já aposentados.

À guisa de justificação, Pacheco alega que é preciso transformar as carreiras jurídicas públicas em algo mais “atrativo”, tanto para “os jovens operadores do direito” como para os que já estão “no fim de suas carreiras”. Entende-se a necessidade de progressão salarial, mas não é disso que se trata. As carreiras jurídicas públicas já são atrativas, como demonstra a acirrada disputa por vagas a cada concurso público. E o são justamente porque compõem a parcela mais bem remunerada não apenas do serviço público, mas do País.

Os defensores dos privilégios para membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, entre outros, alegam desproporção salarial em relação às carreiras jurídicas na iniciativa privada. Contudo, com boa dose de malícia, só enxergam os milhões de reais que poucas bancas conseguem amealhar, e não a massa de advogados que batem ponto nos fóruns Brasil afora para ganhar, em média, nem um terço do que ganha um juiz em início de carreira.

Para adicionar insulto à injúria, o quinquênio ainda seria pago a título de indenização, e não remuneração, de modo a não incidir sobre o teto constitucional do funcionalismo público. Eis uma breve aula acerca dos percalços de uma República que há quase 135 anos luta para se afirmar como tal.

Teste de realidade

O Estado de S. Paulo

As pressões de sindicatos e movimentos sociais sobre o governo são cada vez maiores, o que exige uma habilidade política que Lula da Silva não parece demonstrar no momento

Liderado por um ex-paredista, o governo federal está enfrentando o duro teste de realidade de quem prometeu atender demandas praticamente impossíveis de cumprir, sobretudo diante dos companheiros de sindicatos e de movimentos sociais que equiparam a eleição de Lula da Silva à volta do messias. Passados mais de 15 meses de mandato, as pressões são evidentes, e o governo parece mais atônito do que nunca nas suas respostas.

Fazendo jus à sua vocação para emparedar governos, especialmente governos lulopetistas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) puxa o grito das gralhas, com sua tradicional sequência de invasões e delitos a que chama de “Abril Vermelho”. Enquanto o governo anunciava o Programa Terra da Gente, destinado a acelerar assentamentos, o bando invadia propriedades privadas e públicas em pelo menos 11 unidades da Federação, incluindo áreas de pesquisa da Embrapa e da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), ambas ligadas ao Ministério da Agricultura. Por afinidade ideológica ou pela esqualidez moral do governo, a truculência habitual foi premiada mais uma vez.

Enquanto isso, a paralisação dos profissionais do meio ambiente ameaça, desde janeiro, a fiscalização ambiental e a emissão de licenças para obras de infraestrutura suspensas. Uma bomba-relógio com perigo iminente para o que se imagina ser estratégia do governo Lula para o País, isto é, a economia e o meio ambiente. Antes, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho – uma espécie conhecida (e não rara em governos do PT) de “ministro dos sindicatos” –, defendeu distorções em favor dos privilégios das guildas. Primeiro, Marinho tentou arruinar a reforma trabalhista, com mudanças que feririam de morte a modernização da legislação implementada no governo Temer; depois, seguiu numa ofensiva atabalhoada em nome do projeto de lei que cria direitos trabalhistas para motoristas de aplicativos.

Agora professores de universidades e institutos federais entraram em greve reivindicando reajuste salarial, reestruturação de carreira e equiparação dos benefícios dos servidores públicos federais àqueles concedidos ao Legislativo e Judiciário. O diálogo aberto com o governo não freou o ímpeto da categoria para suspender as aulas. Trata-se de uma iniciativa que, como se sabe, prejudica tão somente os alunos e o País, como bem resumiu o ministro da Educação, Camilo Santana – aliás, um dos raríssimos exemplos de condenação pública de uma autoridade petista a um movimento grevista. Servidores técnico-administrativos de institutos federais já estão em greve desde março, pedindo a revogação de diversas iniciativas de governos anteriores, ao pregar inclusive uma contrarreforma da Previdência Social.

Não satisfeito, o partido do presidente tem reforçado as pressões ao liderar a sabotagem ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Para os petistas, certamente não sem o aval de Lula, Haddad erra ao se esforçar pelo elementar: a responsabilidade das contas públicas. Um esforço vão, como se viu na revisão da meta fiscal para este ano. No pensamento rupestre lulopetista, as lições dos governos anteriores de Lula e Dilma Rousseff devem ser revogadas e substituídas pelo raciocínio torto e reconhecidamente ineficaz segundo o qual é gastando mais que se cresce.

Pressões de toda ordem fazem parte da rotina de governos, à esquerda e à direita, responsáveis ou populistas. Sobretudo quando demandas ficaram represadas durante quatro anos, como foi o caso do governo de Jair Bolsonaro, marcado por arrocho salarial e absoluta ausência de diálogo. O problema das pressões atuais é que exigem uma habilidade política que Lula não parece demonstrar no momento. Ele e seus ministros vêm se desequilibrando num perigoso pêndulo – ou a dificuldade de atender as demandas ou a tentação de atendê-las em demasia.

Seus efeitos são trágicos e conhecidos: desarranjos institucionais, greves, invasões de terra e a areia movediça da instabilidade e do risco permanentes. Uma tentação adicional para abrir os cofres onde não há espaço para concessões.

Liturgia democrática

O Estado de S. Paulo

É um avanço ver o diálogo civilizado entre o ministro da Justiça e a bancada da bala no Congresso

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi nesta semana a uma audiência da Comissão de Segurança Pública da Câmara e de lá saiu com um triunfo imprescindível para um País cindido e polarizado: a retomada da liturgia da democracia, aquela segundo a qual se assenta o princípio elementar de convivência respeitosa entre contrários, a busca de consensos e a relação harmoniosa entre representantes de dois Poderes. A comissão é um espaço de maioria oposicionista e concentrada na chamada bancada da bala, e parlamentares bolsonaristas não hesitaram em provocar o ministro e demarcar suas diferenças, sobretudo na política de armas. Mas nem a oposição nem o convidado ficaram presos nas armadilhas das discordâncias, como se inimigos fossem.

Lewandowski tratou os parlamentares não como irresponsáveis armamentistas, mas como lideranças experientes no assunto. Sugeriu canal de diálogo em torno de pontos pleiteados pela bancada, como o direito adquirido de clubes de tiro fechados por decreto. Deixou alternativas em aberto para acomodar demandas e criticou a inflexibilidade em relação à oposição – recomendação a ser ouvida por muitos dos seus colegas ministros, do PT e do próprio Palácio do Planalto, que costumam enxergar oposicionistas ou como potenciais cooptados ou, repetindo os métodos do expresidente Jair Bolsonaro, como inimigos a serem aniquilados. Em contrapartida, foi elogiado. O próprio presidente do colegiado, Alberto Fraga (PL-DF), prometeu no início da sessão que o ministro não seria destratado. E não foi.

A demonstração de civilidade na comissão é mais notável quando se observa o atual panorama das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário e sua espiral descendente de revanches e conflitos (ver o editorial Freios e contrapesos em frangalhos, 18/4/2024). E mais ainda quando se recorda das diatribes produzidas pelo antecessor de Lewandowski. Quem não se lembra das ruidosas polêmicas protagonizadas por Flávio Dino? À época, substituía a liturgia do cargo pela vocação exibicionista, opinava histrionicamente sobre tudo e sobre todos, fustigava adversários, fazia prejulgamentos sobre casos e se convertia numa espécie de influencer militante, mais preocupado em atingir corações e memes nas redes sociais do que zelar pelas funções do cargo.

A mudança não ocorre sem riscos. Há um equilíbrio tênue a buscar, sobretudo num terreno onde não faltam convicções enraizadas. O próprio ministro deu um exemplo disso, o veto ao artigo da nova Lei de Execuções Penais que proibia saídas temporárias de presos por razões familiares. Por outro lado, a bancada da bala claramente pressionou Lewandowski contra uma diretora da pasta que ajudou a elaborar o decreto que reviu a política de controle de armas. A resposta do ministro deu sinais de que pode rifá-la.

Já se trata, porém, de um avanço extraordinário poder assistir a uma audiência do ministro da Justiça sem parecer que estamos diante de um teatro de guerra ou de animadores de auditório. A liturgia da democracia dá mais trabalho, mas é o melhor caminho para aperfeiçoar ideias e reconstruir o País.

Instabilidade pode mudar a rota de atuação do BC

Valor Econômico

Mais uma vez, após um bom intervalo de tempo para consertar o problema fiscal, nova onda de instabilidade externa atinge o Brasil e pode obrigar a taxa Selic a estacionar em nível indesejavelmente alto

As turbulências atuais já eram previstas, com a reversão de expectativas otimistas demais por parte dos investidores quanto ao afrouxamento da política monetária nos EUA. Cortes rápidos das taxas, ignorando a base cautelosa das afirmações das atas do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), se revelaram enorme erro de cálculo. A persistência de juros maiores nos EUA, uma possibilidade sublinhada pelo Fed há meses, está na base da volatilidade atual nos mercados financeiros globais. A consequência direta, o fortalecimento do dólar, afeta países com diferentes graus de solidez econômica. No caso do Brasil, foi um mau momento. Apesar de a economia apresentar performance razoável, o governo brasileiro ignorou os sinais de resistência inflacionária e abandonou a promessa de controle, já frouxa, trazida pelo novo regime fiscal.

Mas, assim como os investidores erraram no otimismo, podem estar errando agora na direção contrária. O FMI já advertira há meses que o movimento de reavaliação dos preços dos ativos em caso de manutenção dos juros nos EUA por mais tempo sacudiria as economias emergentes pelo canal financeiro. Essa ameaça não atingiu o Brasil pelo lado mais perigoso, o da fuga de dólares e problemas no balanço de pagamentos, com diminuição da capacidade de respeitar seus compromissos - as reservas nacionais são de US$ 352 bilhões -, e sim pela desvalorização cambial e seus efeitos potenciais sobre a inflação doméstica. Foi a combinação inusual de aumento dos preços das commodities e do dólar em relação ao real que fez a inflação ultrapassar os dois dígitos (10,06%) em 2021.

Haverá um impulso inflacionário se o dólar mudar permanentemente de patamar, o que não é uma certeza. Em repiques anteriores ele regrediu - ainda no início de abril a cotação foi de R$ 5, oscilando abaixo disso por quase um ano. Um problema premente, porém, é o do reajuste de combustíveis. Antes da disparada da moeda americana, havia defasagem estimada de 17% nos preços domésticos da gasolina e de 12% no caso do diesel. A desvalorização do real torna a defasagem maior, assim como dá urgência à necessidade de correção. Um reajuste de 10% levaria o IPCA a subir 0,49% no mês subsequente, o que não é pouca coisa diante de uma inflação em 12 meses de 3,93% em março.

Os cenários doméstico e externo, já qualificados como incertos na ata da mais recente reunião do Copom, tornaram-se ainda mais fluidos. Assim, não é possível determinar com qualquer precisão se o balanço de riscos delineado pelo Banco Central se alterou.

O BC alinhava entre os riscos de alta a “maior persistência das pressões inflacionárias globais”, o que parece se firmar como elemento desestabilizador agora, e, no campo doméstico, “uma maior resiliência na inflação de serviços do que a projetada em função de um hiato do produto mais apertado”, o que também encontra apoio na realidade. Os riscos de baixa tornaram-se bem menores: a “desaceleração da atividade econômica global mais acentuada do que a projetada” e “os impactos do aperto monetário sincronizado sobre a desinflação global se mostrarem mais fortes do que o esperado”.

Diante do aumento dos riscos para a inflação, o BC já havia reduzido seu horizonte de orientação futura de dois meses para um. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, indicou que mesmo a sinalização de novo corte de 0,5 ponto em maio está em xeque e abriu, em palestras em Washington, um leque de quatro possibilidades. No caso de mudanças significativas que o obriguem a modificar o cenário de risco, o processo de queda dos juros já seria interrompido na próxima reunião, dentro de três semanas. Se as turbulências forem passageiras, como chuvas de verão, o corte de 0,5 ponto percentual da Selic estará assegurado. Se a volatilidade continuar alta, sem que seus efeitos sejam mais graves do que os que já se manifestam, o corte de juros seria atenuado para 0,25 ponto percentual. E, no caso de um cenário de forte estresse global, a Selic poderia voltar a subir.

Alguns graus de instabilidade foram acrescidos a esse quadro com a mudança das metas fiscais trazidas pelo projeto de LDO de 2025. Ficou comprovado que o governo não tem interesse em persistir na busca do equilíbrio das contas públicas e está mais interessado em obter crescimento a qualquer custo, mesmo com a inflação ainda desancorada, tornando mais difícil sua queda e mais provável sua elevação. Os efeitos da frouxidão fiscal, porém, se manifestam ao longo do tempo, mas com efeitos imediatos nas expectativas, que pioraram.

Salvo desastres geopolíticos, a situação econômica global pode não ser muito afetada pela revisão das expectativas e os mercados se reacomodarem em breve. A inflação resistente no mundo inteiro deve exigir juros maiores por mais algum tempo, o que não é sinônimo de catástrofe à vista. Porém, mais uma vez, após um bom intervalo de tempo para consertar o problema fiscal, nova onda de instabilidade externa atinge o Brasil e pode obrigar a taxa Selic a estacionar em nível indesejavelmente alto. Parar com taxa real perto de 6% inibirá investimentos e o crescimento da economia, além de piorar as contas fiscais.

Brasil e os seus povos indígenas

Correio Braziliense

A comemoração foi criada como Dia do Índio, em 1943, na Era Vargas, muito pela pressão de Marechal Rondon, importante indigenista brasileiro

Nesta sexta-feira, é celebrado o Dia dos Povos Indígenas. A comemoração foi criada como Dia do Índio, em 1943, na Era Vargas, muito pela pressão de Marechal Rondon, importante indigenista brasileiro. O objetivo era celebrar a diversidade da cultura indígena e destacar a relevância desses povos na história nacional. Passados 81 anos da instituição da data e com a nova denominação a partir de 2022, os propósitos de combater preconceitos e fortalecer a luta por direitos ainda se mostram urgentes.

Nas escolas, é tradicional que eventos sobre a temática ocorram. A abordagem na sala de aula segue fundamental, mas ir além disso também. Aproveitar o dia para pensar nos avanços que devem ocorrer para que os direitos dos povos indígenas sejam integralmente garantidos é necessário. Mesmo com as conquistas ao longo do tempo, refletir sobre as questões não resolvidas precisa fazer parte das atividades comemorativas.

De 1943 até hoje, os povos indígenas fortaleceram suas organizações, formaram lideranças e produziram ações determinantes. O estabelecimento da primeira reserva indígena, na década de 1960, os movimentos que marcaram a Constituinte e a criação do Ministério dos Povos Indígenas e de uma Frente Parlamentar Mista, em 2023, são marcos importantes. Porém, o debate para a definição de diretrizes governamentais precisa continuar.

Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população indígena chegou a 1.693.535 pessoas em 2022, o que representa 0,83% do total de habitantes. Um pouco mais da metade (51,2%) estava concentrada na Amazônia Legal. Em 2010, quando foi realizado o levantamento anterior, foram contados 896.917 indígenas. Isso equivale a um aumento de 88,82% em 12 anos. Além disso, houve crescimento no número de terras indígenas, passando de 505 para 573 entre 2010 e 2022. O que não se consegue mensurar é a contribuição dos povos originários na formação do Brasil.

Lamentavelmente, a tentativa de apagamento da cultura indígena produziu efeitos perversos. Diante disso, recuperar devidamente o peso histórico do modo de viver desses povos é uma pauta obrigatória. O país precisa dar o devido espaço ao protagonismo indígena nas mais diversas áreas. O desrespeito de décadas exige reparações e, para isso, o debate tem de ocorrer no cotidiano.

Quebrar preconceitos e abrir lugar aos indígenas na sociedade conferem significado a esta sexta-feira. Por outro lado, cobrar a responsabilidade dos governos para que os direitos indígenas sejam respeitados é ponto crucial. A discussão sobre políticas públicas que garantam a dignidade e protejam os valores desses povos está longe de acabar.

O futuro indica um aumento da presença de indígenas exercendo atividades com diploma de ensino superior e cada vez mais qualificados para ocupar posições de liderança. Essa participação expande o alcance profissional, no entanto, deve vir acompanhada da inclusão social. O indígena deve estar inserido no sistema com toda a sua grandeza e essência. Ainda falta muito a ser realizado, como resolver o impasse da demarcação de terras, e por isso o Brasil ainda não pode festejar plenamente.

 

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