segunda-feira, 8 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Brasil tem condição de superar recuo no ensino fundamental

O Globo

Estados que obtiveram sucesso mostram como é possível recuperar educação do retrocesso da pandemia

Vigente desde 2014, o Plano Nacional de Educação estabeleceu 20 objetivos a cumprir até 2024. Um dos principais é universalizar o ensino fundamental, com duração de nove anos, para toda a população de 6 a 14 anos, garantindo que pelo menos 95% dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada. De 2016 a 2022, a parcela da população nessa faixa etária no ensino fundamental nunca ficou abaixo de 95,2%. Parecia que pelo menos esse quesito era uma conquista garantida. No ano passado, porém, o número caiu para 94,6%, mostram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Continua divulgados recentemente pelo IBGE.

A média nacional mascara realidades distintas. Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo apresentam desempenho igual ou superior a 95%. Todos os outros estados estão abaixo, com destaque negativo para Roraima e Mato Grosso. No ano-limite para cumprir mais essa meta do Plano Nacional de Educação, os governadores dos estados retardatários têm o dever de apresentar explicações e planos para enfrentar o problema.

A pandemia certamente tem boa parte da responsabilidade pelo recuo. O Brasil foi um dos países em que as escolas ficaram fechadas por mais tempo. Diante da liderança débil do Executivo, prevaleceu a vontade dos sindicatos. Ao contrário de funcionários públicos das áreas da saúde e de segurança, os professores se negaram a trabalhar presencialmente durante um tempo demasiado longo. Quando as portas das escolas finalmente reabriram, as crianças já haviam acumulado atraso na trajetória escolar. Em 2019, último ano antes da Covid-19, apenas 11% das crianças de 6 anos — idade recomendada para o início da escolarização formal — frequentavam a pré-escola em vez do ensino fundamental. Na última medição, eram 29%.

Embora tenha havido queda geral na parcela de crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos no ensino fundamental desde 2019, algumas unidades da Federação se saíram melhor. Analisar as causas do sucesso e do fracasso evitará a repetição dos mesmos erros. O que une todos os estados agora é a urgência para evitar abandono, evasão ou repetência, problemas crônicos da educação que a pandemia acentuou. Dos brasileiros nascidos entre 2000 e 2005, não mais que 52% completaram o ensino fundamental na idade adequada, segundo pesquisa recente do Instituto Itaú. O estudo constatou evasão de 10%.

A educação brasileira tem inúmeros desafios. Atrair e manter crianças e jovens nas salas de aula nas idades correspondentes é apenas o primeiro. O principal é garantir uma qualidade mínima no ensino. Apenas 41,4% dos alunos do 9º ano das redes pública e privada em 2019 apresentavam aprendizagem adequada em língua portuguesa. O percentual, embora já tenha sido bem mais baixo — em 2007, eram 20,5% — ainda é estarrecedor. O desempenho em matemática e disciplinas científicas também é vergonhoso. A melhora na qualidade de ensino precisa ser mais rápida. Mas não dá para encarar a educação no país como terra arrasada. Estados com desempenho positivo, caso do Ceará, devem servir de inspiração aos que ficaram para trás. Com persistência e rigor, o Brasil tem plenas condições de vencer a batalha da educação.

Tecnologia ajuda no combate à indústria do celular ilegal

O Globo

Um quarto dos aparelhos vendidos são roubados ou contrabandeados. Iniciativa no Piauí dá exemplo contra os furtos

Há no Brasil 250 milhões de celulares, mais de um por habitante. Mais que bem de primeira necessidade, o aparelho virou motivo de preocupação. Quando alvo de ladrões, expõe informações pessoais, contas bancárias, cartões de crédito ou identidades digitais. Em 2022, último ano com dados consolidados, quase 1 milhão de celulares foram furtados no Brasil, 16% a mais que em 2021. O mercado de aparelhos ilegais também não para de crescer. No último trimestre de 2023, os celulares oriundos de furto ou contrabando representaram 25% das vendas, segundo pesquisa divulgada pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). Há um ano respondiam por 10%.

Surgiram quadrilhas especializadas em lidar com os celulares surrupiados. Mesmo bloqueados, eles podem fornecer peças ou ser contrabandeados para países africanos, onde o bloqueio não é reconhecido pela rede de telecomunicações. O universo criminoso também inclui vídeos espalhados na internet, com dicas sobre como lidar com os aparelhos roubados. A maior parte é vendida em sites que não se responsabilizam pelas vendas de terceiros. Os preços irrisórios são impraticáveis para distribuidores que atuam dentro da lei. De acordo com a Abinee, o governo federal perde R$ 4 bilhões em impostos por ano com a indústria do celular ilegal, e só o estado de São Paulo deixa de arrecadar R$ 1 bilhão em ICMS.

No combate a essa modalidade de crime, a tecnologia tem sido o principal aliado das autoridades. Em dezembro, o governo lançou o programa Celular Seguro, que permite bloquear, pelo aparelho de uma pessoa de confiança, a linha telefônica, os aplicativos bancários e o identificador único do celular furtado ou extraviado (conhecido pela sigla IMEI). A partir daí, ele não pode mais ser habilitado por nenhuma operadora. Em apenas uma semana, o Celular Seguro bloqueou 4.349 aparelhos roubados ou perdidos.

Mas isso não significa que os furtos tenham parado. De janeiro de 2023 ao início do ano, apenas em São Paulo houve 640 prisões por envolvimento na indústria de furto, receptação e venda criminosa de celulares, segundo a Secretaria de Segurança Pública paulista. São quase duas por dia. Uma quadrilha investigada invadia contas bancárias e vendia peças de aparelhos. Apenas com ela, a polícia recuperou mais de 800 celulares. Um suspeito foi preso com mais de 50 numa mochila.

Nenhuma iniciativa contra o furto de celulares tem chamado mais a atenção que a promovida pela polícia do Piauí. O estado reduziu em 31% os roubos e furtos com base na identificação de celulares surrupiados que voltaram a ser habilitados. Uma parceria com o Judiciário permite o envio em massa de intimações a aparelhos de origem suspeita. Em oito meses, foram recuperados quase 6 mil celulares, mil deles devolvidos aos donos em um só dia. Os policiais também já fecharam 65 lojas envolvidas na receptação. O Ministério da Justiça anunciou que pretende disseminar pelo país as práticas do Piauí, um caminho promissor para combater a indústria do celular ilegal.

Com mais idosos, será preciso fortalecer o SUS

Folha de S. Paulo

Gasto de brasileiros com saúde cresce, em tendência previsível; a longo prazo, governos terão de conter outras despesas

Dados recém-divulgados pelo IBGE mostram que os brasileiros têm destinado parcelas crescentes de sua renda a serviços de saúde e medicamentos nos últimos anos, uma tendência previsível com a transformação demográfica e o envelhecimento da população.

A despesa pública e privada do país com tal finalidade somou 9,7% do Produto Interno Bruto em 2021, ante 8% em 2010. A expansão deve continuar nos próximos anos, visto que em países mais desenvolvidos e com maior proporção de idosos entre os habitantes, como Alemanha, França e Reino Unido, o índice chega a 12% ou mais.

Por aqui, o aumento dos gastos no período se concentrou nas famílias —de 4,4% para 5,7% do PIB. Já os desembolsos dos governos federal, estaduais e municipais passaram de 3,6% para 4% do produto.

Os números refletem o sistema híbrido de financiamento da saúde que, na prática, desenvolveu-se no Brasil. Embora disponhamos de um sistema público universal de atendimento, o que sem dúvida é uma conquista civilizatória, estamos longe de poder abrir mão dos recursos privados.

Será necessário fortalecer o SUS para fazer frente à alta esperada da participação de idosos na população. Hoje, homens e mulheres com idade acima dos 65 anos representam perto de 11% dos brasileiros; projeta-se que o patamar de 20% será ultrapassado em 2050, e o de 30% estará próximo em 2070.

Os gastos das famílias já são elevados no país, de acordo com a comparação internacional. Já a participação pública está abaixo da observada não só em países desenvolvidos, mas em vizinhos emergentes como Chile e Colômbia, citados no trabalho do IBGE.

Um sistema baseado em planos privados não se mostra opção desejável, dada sua propensão ao encarecimento dos serviços, que tendem a ser sobreutilizados por pacientes e médicos. O grande exemplo negativo é o dos EUA, onde as despesas com saúde chegam a exorbitantes 16,6% do PIB.

No atual cenário de penúria orçamentária, não há como pensar em um aumento rápido e vigoroso dos recursos do SUS. A longo prazo, será preciso rever prioridades e conter outras despesas para viabilizar maior atenção ao setor.

É fundamental também avançar em melhorias de gestão e alocação de recursos. A pasta da Saúde, infelizmente, é alvo da cobiça da política rasteira do Congresso, levando a pulverizar recursos em obras paroquiais que podem facilitar a eleição de parlamentares e prefeitos, mas não são submetidas a critérios de eficiência.

Corrigir o FGTS

Folha de S. Paulo

No STF, governo propõe nova regra; debate ainda ignora as restrições do fundo

O governo federal apresentou uma proposta de garantir no mínimo a reposição da inflação em julgamento sobre a correção do FGTS no Supremo Tribunal Federal.

Uma ação de 2014 questiona a regra atual —taxa referencial (TR) mais 3% ao ano e uma parcela dos lucros do fundo— por não considerar os índices de preços ao consumidor. Argumenta-se que o STF já declarou a TR inconstitucional em outros casos, como correção de precatórios e ações trabalhistas.

No proposta encaminhada pela Advocacia-Geral da União, haveria um complemento caso a correção seja insuficiente para manter o poder de compra. Os meios para pagá-lo seriam definidos por conselho composto por membros de governo, empresas e sindicatos.

A mudança valeria só para valores futuros, o que não contempla a demanda principal de reposição da diferença acumulada —cerca de 90% só entre 1999 e 2013, data do estudo que baliza a ação.
Luís Roberto Barroso, o ministro relator, votou para não afastar a constitucionalidade da TR e, ao mesmo tempo, ampliar a remuneração apenas futuramente. Disputas quanto ao passado devem ser negociadas entre as partes.

É um caminho coerente. Quanto ao uso da TR, à diferença dos outros casos em que ela foi descontinuada, há uma lei específica que rege o FGTS. Não faz sentido, ademais, impor custos desmesurados para os contribuintes por alterações com impacto retroativo.

Deve-se garantir correção justa aos saldos dos trabalhadores, e a proposta do governo é equilibrada. Entretanto o debate não aborda a questão principal, que é a existência do FGTS em seu formato atual.

O fundo foi pensado como poupança compulsória para financiar projetos de interesse social, como saneamento, mas as regras de resgate são restritivas —demissão involuntária, compra de casa própria, doenças graves ou aposentadoria.

É preciso rever de modo mais amplo o funcionamento do FGTS. De mais imediato, além de regras de correção mais razoáveis, são necessárias mais opções para aplicação e regate dos recursos, que afinal, pertencem ao trabalhador.

Na gestão petista, infelizmente, é forte a propensão a restringir o acesso aos recursos do fundo, uma pauta permanente do Ministério do Trabalho de viés sindicalista.

Impotência regional medíocre

O Estado de S. Paulo

Maduro legaliza a repressão doméstica e a agressão internacional, mas Lula, que não economiza hipérboles para tratar da Europa ou Oriente Médio, impõe um silêncio ensurdecedor ao Itamaraty

Após castrar politicamente a oposição, impedindo a inscrição de seus candidatos para as eleições de julho, o ditador Nicolás Maduro deu o golpe de misericórdia no que restava da democracia venezuelana. O regime engendrou uma lei “Contra o Fascismo, Neofascismo e Expressões Similares”. Entre os traços distintivos do “fascismo” – além do “chauvinismo”, “classismo” ou “qualquer tipo de fobia contra o ser humano” – constam o “conservadorismo moral” e o “neoliberalismo”. Em resumo, “fascista” é todo aquele que o regime disser que é. Com isso, a ditadura chavista se deu carta branca para censurar de vez a imprensa e redes sociais, proibir reuniões e manifestações pacíficas e dissolver partidos políticos ou instituições da sociedade civil consideradas “fascistas” ou – para não deixar sombra de dúvida da arbitrariedade – “similares”.

Entre manifestações puníveis com mais de 8 anos de cadeia estão as que promovem “a violência como método de ação política”, “reproduzem a cultura do ódio”, “denigrem a democracia e suas instituições”, “promovem a suspensão de direitos e garantias” e “exaltam princípios, fatos, símbolos e métodos do fascismo”. A ironia é que, se houvesse Justiça independente na Venezuela, Maduro e seus bate-paus seriam os primeiros a ser punidos por esses crimes, a começar pelo último. Não há na América do Sul nada mais similar ao regime fascista de Mussolini que o regime chavista.

Como de hábito em regimes autoritários – vide a Rússia de Vladimir Putin –, a repressão interna retroalimenta a agressão externa e vice-versa. A perseguição de dissidentes é legitimada pela “lei” e impulsionada pela “ameaça à segurança nacional”. Como não havia nenhuma, Maduro a fabricou, ameaçando a Guiana. Pari passu à lei antifascismo, Maduro promulgou outra lei criando o Estado venezuelano da “Guiana Essequiba”, o que, em tese, significa anexar 70% do território guianense.

Não há surpresa em nada disso. O que surpreende é a inacreditável pusilanimidade do Brasil.

A condenação da comunidade internacional civilizada é unânime, inclusive de lideranças de esquerda latinoamericanas. Todos os países do Mercosul, com exceção do Brasil, condenaram sem meias palavras a orgia totalitária chavista. O presidente chileno, Gabriel Boric, recriminou “a detenção arbitrária de representantes políticos da oposição”. O colombiano Gustavo Petro classificou como “golpe antidemocrático” a inabilitação da líder de oposição María Corina que o presidente Lula chancelou como um processo judicial perfeitamente limpo. O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, ícone da esquerda latino-americana, vocalizou o veredicto final: “Isso não se pode chamar democracia”.

Já Lula rebaixou o Estado brasileiro a uma usina de panos quentes. No improviso de uma entrevista coletiva, Lula se descuidou de sua habitual hipocrisia deixando escapar que considera “grave” o bloqueio à candidatura da substituta de Corina, mas, oficialmente, o máximo que permitiu à sua chancelaria foi uma nota de “preocupação”. O resto é silêncio, mesmo ante a ameaça de um conflito regional.

O Brasil mediou em São Vicente e Granadinas um acordo entre a Venezuela e a Guiana em que ambos os países se comprometiam a manter o diálogo diplomático “sem provocações”. É mais um pacto que Maduro manda pelos ares. No Itamaraty, silêncio obsequioso. Sem qualquer laivo de reprovação, o chanceler paralelo de Lula, Celso Amorim, prometeu “reforçar o diálogo” com Maduro.

A esfera de influência do Brasil não é o Leste Europeu ou o Oriente Médio. Mas, para conflitos nessas regiões, a indignação de Lula atinge estratosferas hiperbólicas. Já quando a ameaça se ergue do outro lado de suas fronteiras, nem meia palavra de recriminação, só frases inteiras de contemporização. Sequestrada pelas afinidades pessoais e ideológicas de Lula, a política externa nacional é desmoralizada ante a comunidade internacional e o capital diplomático brasileiro é dilapidado a olhos vistos. E assim o Brasil, uma potência regional média, é reduzido, contra seus mais elementares interesses, a uma impotência medíocre.

A próxima pandemia vem aí

O Estado de S. Paulo

A conclusão do pacto multilateral de prevenção da ONU está se provando difícil. O risco é de complacência: quanto mais deixamos a pandemia para trás, mais fácil é esquecer a que vem pela frente

No fim de 2021, ainda em meio ao morticínio da pandemia de covid-19, mas já se aproximando, pela força das vacinas, do fim do túnel, o mundo optou por um “compromisso geracional”, nas palavras do diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, “de não voltar ao velho ciclo de pânico e negligência”. As 194 nações da ONU concordaram em preparar, até maio de 2024, um ambicioso plano global para enfrentar a ameaça conhecida como “Doença X” – o codinome para algum patógeno desconhecido, possivelmente mais contagioso, mortífero e resiliente que o coronavírus. Mas, após nove rodadas de negociações, a conclusão está se provando difícil.

Todos sabem o que é preciso fazer: prevenir (o surgimento de novos patógenos); detectar (caso algum surja); conter (a sua propagação); e tratar (as infecções). Esse é o roteiro desde que os seres humanos são acometidos por doenças contagiosas. Mas a covid revelou fatores de risco maiores do que em toda a história: uma humanidade mais adensada, conectada e móvel, que pressiona o meio ambiente.

Há cerca de 1,6 milhão de vírus no planeta em mamíferos e pássaros, e todos os anos surgem novos. Muito dessa “matéria escura viral” escapa ao nosso controle, mas podemos reduzir os riscos aliviando pressões sobre biomas e o tráfico de animais. Outra questão é o controle dos laboratórios. A detecção exige um sistema de vigilância viral. A contenção e o tratamento serão mais rápidos se o mundo for capaz de concertar protocolos de isolamento, produzir arquivos de vacinas prototípicas e estiver em condições de mobilizar agilmente testes clínicos, marcadores biológicos indicando respostas imunológicas às vacinas e fábricas de biomanufatura.

A dificuldade não é tanto o que fazer, mas como. Neste momento, há três zonas de controvérsia: o grau de ingerência que os países cederiam à OMS; os custos para os contribuintes; e o compartilhamento de informações entre Estados e entre empresas.

Não são problemas triviais, e se ainda não foram solucionados não é por mera má vontade. Por exemplo, interferir nos direitos de patentes e perspectivas de lucro das farmacêuticas pode reduzir o incentivo para o desenvolvimento de vacinas. Mas não interferir pode prejudicar a escala e a equidade da distribuição. Patógenos infecciosos não conhecem fronteiras nem distinguem classes e, se uma parte do mundo estiver desprotegida, o mundo estará.

São desafios que exigem cálculos apurados de custo-benefício e negociações intensas, mas superá-los é factível. O risco é não superá-los em tempo, não por má vontade, egoísmo ou ganância, mas por apatia, distração ou complacência.

A ameaça das pandemias é diversa de outros riscos existenciais, como mudanças climáticas, proliferação nuclear ou inteligência artificial. Estes riscos estão condicionados a tecnologias em expansão, que exercem uma pressão constante e crescente. Podemos momentaneamente nos alienar desta pressão, mas há sempre uma catástrofe ambiental, um conflito armado ou uma invenção disruptiva para nos despertar.

Pandemias se comportam como o tubarão do famoso filme: surgem do nada, causam caos e carnificina e desaparecem nas profundezas. O risco é repetir o “velho ciclo de pânico e negligência” de que fala Adhanom. “Porque somos tão bons em seguir adiante para as próximas coisas como humanos – isso é parte de nossa estratégia de sobrevivência –, há quase essa amnésia coletiva”, advertiu Ashley Bloomfield, um ex-secretário de Saúde neozelandês.

É incerto o que virá, quando, onde ou como, mas é certo que virá uma nova pandemia. Evitá-la não está em nosso poder, ao menos não completamente, mas está em nosso poder nos preparar melhor para monitorá-la, antecipar modelos vacinais e nos planejar para produzi-los e distribuí-los rapidamente. Porém o maior desafio a essa preparação não é técnico ou financeiro, mas psicossocial: a nossa tendência a esquecer que há um desafio. Quanto mais nos afastamos da pandemia de covid, maior é essa tendência. O problema é que, quanto mais nos afastamos da covid, mais nos aproximamos da “Doença X”.

A boiada assombra

O Estado de S. Paulo

Pauta de retrocessos ambientais avança e fragiliza negócios sustentáveis

Corria o mês de abril e uma polêmica reunião interministerial, quatro anos atrás, quando o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse a célebre frase que se transformaria em símbolo dos retrocessos promovidos por ele e pelo presidente Jair Bolsonaro na área ambiental: era hora, sugeria Salles, de o governo aproveitar que os olhos da imprensa estavam voltados à pandemia de covid para “ir passando a boiada e mudando o regramento”. Passou o governo, mas ficou no Congresso o espírito bolsonarista, com seu radicalismo isolacionista e negacionista. Basta ver os sinais de que há uma boiada passando na Câmara: pelo menos seis projetos abrem a porteira do desmatamento e promovem novos retrocessos onde há avanços no País.

Um desses projetos – aprovado no fim de março na Comissão de Constituição e Justiça e cuja tramitação pode levá-lo diretamente ao Senado – altera o Código Florestal para permitir a exploração de vegetações nativas predominantemente não florestais em todos os biomas brasileiros. O mesmo texto inclui um dispositivo conflitante com a Lei da Mata Atlântica, facilitando regras para a regularização ambiental de imóveis rurais. Outros projetos flexibilizam as Áreas de Preservação Permanente, as APPs, e medidas de prevenção a incêndios em áreas rurais, além de legalizar o garimpo em reservas extrativistas, entre outros pontos.

O Brasil tem uma legislação ambiental avançada, índices de preservação elevados, uma matriz energética das mais limpas e um agronegócio produtivo e sustentável. Esteve longe, portanto, da condição de pária ambiental, como muitos previam e temiam – mesmo antes de Bolsonaro deixar o poder. O Código Florestal, que pode sofrer abalo agora, tornou-se referência internacional ao estabelecer metas e instrumentos de preservação ambiciosos e inovadores. Com décadas de investimento em tecnologia e produtividade, o agronegócio brasileiro abastece uma parte considerável do mundo, mesmo usando só 8% do território nacional para cultivo e 18% para pastagem. Por força das exigências legais, cerca de 30% das terras brasileiras são preservadas pelos próprios produtores rurais, às suas expensas.

Todos esses atributos não podem ser desperdiçados por setores que não se deram conta de que a questão ambiental é parte do presente e do futuro dos negócios, das empresas e do País. Basta lembrar que dois temas se tornaram objeto de regras bastante restritivas para os investidores globais de longo prazo: corrupção e meio ambiente. Convém evitar catastrofismos, mas o fato é que, sem ações efetivas de controle da supressão da vegetação nativa, por exemplo, não é possível cumprir acordos internacionais, como os assumidos em Davos e na Conferência do Clima das Nações Unidas, como a meta de desmatamento zero.

Se deixar que os projetos avancem, o Congresso ajudará a provocar danos não apenas na imagem, como também nas finanças nacionais – e nas possibilidades de uma sustentabilidade duradoura e resistente às mudanças globais. Eis por que a boiada ainda assombra.

Elaboração da LDO põe de novo metas fiscais em xeque

Valor Econômico

Revisão sensata das metas até poderia mudar as expectativas, desde que o controle de gastos entrasse na órbita do Executivo

O envio do projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias pelo Executivo ao Congresso até a próxima segunda feira (15) recoloca em questão as metas fiscais para este ano e o próximo. Pelos cálculos do governo, o aumento de arrecadação permitiu que na primeira revisão de receitas e gastos, encerrada em fevereiro, o contingenciamento de despesas fosse mínimo, um dos menores em muito tempo - R$ 2,9 bilhões. Em tese, isso dá a ideia de que a situação fiscal é confortável, quando, na verdade, é o contrário. Pelas projeções do mercado, a meta não será atingida neste ano e em nenhum outro do terceiro mandato de Lula.

Não se trata de uma fatalidade: com corte de gastos é possível atingir as metas. Mas o Planalto, desde a criação do novo regime fiscal, prefere tentar apenas o aumento de receitas para isso, um processo com limites óbvios em um país que já exibe alta carga tributária.

As despesas estão crescendo bem mais que as receitas, que já foram, em boa parte, elevadas para fechar brechas - casos dos fundos exclusivos e dos fundos offshore. Há um limite para o aumento da arrecadação e ele está próximo, disse a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet. “Está se exaurindo o aumento do Orçamento brasileiro pela ótica da receita, passar disso significa aumentar imposto. Precisamos colocar para rodar a esteira sobre a ótica da despesa”, afirmou.

A ministra afirmou que todos os cálculos estão sobre a mesa, o que envolve contenção obrigatória de gastos no exercício orçamentário e as metas fiscais deste e do próximo ano. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por seu lado, disse o óbvio, quando perguntado sobre as chances de atingir 0,5% do PIB de superávit sugerido pelo novo regime fiscal em sua formulação original: que alcançar os objetivos fiscais é uma tarefa dos três Poderes. Haddad tem feito marcação cerrada sobre as frestas que vão sendo criadas por pressões políticas para ampliar os gastos do Tesouro e para burlar as regras orçamentárias pelo caminho usual: a criação de despesas sem que sejam apontadas receitas equivalentes para cobri-las.

O aumento das receitas, base sobre a qual repousa a garantia de aumento das despesas do novo regime fiscal, está ocorrendo, mas o déficit primário, o norte da meta fiscal, continua aumentando. Em fevereiro, segundo o Banco Central, cujas estatísticas diferem das do Tesouro, ele atingiu R$ 262,2 bilhões em doze meses, ou 2,44% do PIB. O déficit no mês, de R$ 48,7 bilhões, foi o maior desde dezembro de 2021. A dívida bruta do governo central aumentou 0,4 ponto percentual, para 75,5% do PIB, enquanto a dívida líquida se manteve estável em 60,9% do PIB. Essas estatísticas, porém, não contam toda a história.

Há um avanço brutal do déficit nominal em função da grande carga de juros. Pela primeira vez desde fevereiro de 2021, ele voltou a ultrapassar R$ 1 trilhão em 12 meses, atingindo 9,24% do PIB. A carga de juros propriamente dita foi de 6,8% do PIB. Não há a menor possibilidade de a dívida se estabilizar, quanto mais cair, enquanto os juros reais forem superiores ao crescimento da economia. Os juros reais estão ao redor de 6% ao ano, enquanto as previsões para o PIB neste e nos próximos dois anos mal ultrapassam o PIB potencial, estimado em 2%. Na melhor das hipóteses, será possível que a expansão fique igual aos 2,9% do ano passado, ainda assim abaixo do que seria necessário para derrubar a relação entre dívida pública e PIB. O futuro não é promissor. Mesmo que a taxa Selic seja de 8,5% no final do ciclo de afrouxamento monetário, a taxa real estará em torno de 5%, percentual muito superior ao ritmo que a economia brasileira poderá alcançar a médio prazo.

O apelo de Haddad de um “pacto” para o cumprimento da meta fiscal, ainda que informal, faz sentido, mas deveria antes ser apoiado pelo próprio Executivo, e, em primeiro lugar, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não há, fora do Ministério da Fazenda, nenhuma palavra sobre contenção de gastos ou sobre alinhamento das despesas com as metas fiscais. Nas reuniões do presidente com os ministros, em um período de queda de popularidade de Lula, as orientações vão todas no sentido contrário, de mais despesas e propaganda sobre obras e ações do governo.

Os investidores neste cenário mantêm a inflação a alguma distância da meta de 3% por meses a fio. A consequência é que, com a resistência da queda da inflação, os juros serão mais altos do que poderiam ser em um quadro de austeridade moderada. Isso ainda é possível. Uma revisão sensata das metas até poderia mudar as expectativas, desde que o controle dos gastos entrasse na órbita do Executivo.

O mote do Planalto parece, no entanto, ser o de, no momento decisivo, ampliar a meta de déficit primário em função da elevação das despesas, e não o de calibrar os gastos para se adequar à meta fiscal. O amortecimento das metas fiscais permitirá ao governo gastar mais até 2026, ano das eleições presidenciais. A inflação, porém, que desgasta a imagem de presidentes, pode atrapalhar esses planos.

 

 

 

 

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