Folha de S. Paulo
Ações afirmativas têm transformado o país, e
por isso há vozes contrárias
À medida que se aproxima o prazo para a
revisão da lei de cotas no serviço público ressurgem os ataques às políticas de
ação afirmativa. Em "Retórica da Intransigência", com enorme perspicácia e
fina ironia, o economista Albert Hirschman descreveu três tipos de argumentos comumente formulados pelo
pensamento conservador contra as sucessivas ondas progressistas de expansão dos
direitos.
Como é difícil negar validade a determinadas reivindicações de liberdade, igualdade e justiça, muitos dos beneficiários de privilégios e das estruturas de subordinação social empenham-se em desqualificar políticas progressistas, sob argumento de que, embora louváveis, são invariavelmente perversas, fúteis e/ou ameaçadoras de outros valores, produzindo resultados inversos aos pretendidos. Logo, melhor deixar que as mudanças sociais sigam o curso natural da história. Afinal, de boas intenções o inferno está cheio.
As ações
afirmativas, especialmente as cotas raciais, seriam um exemplo típico de
políticas "perversas". Formuladas para enfrentar o racismo e a
desigualdade, por meio inclusão de pobres e negros nas esferas de conhecimento
e poder, essas políticas tenderiam a reforçar o racismo contra os negros, na
medida em que romperiam cordialidade inter-racial, podendo inclusive gerar um
sentimento de inferioridade entre os negros, que passariam a se sentir
incapazes de ascender socialmente sem as ações afirmativas.
Para os críticos mais moderados das ações
afirmativas, que chegam a reconhecer as boas intenções dessas políticas, os
esforços seriam absolutamente "inúteis", pois não afetariam as raízes
do problema, que se encontra na má qualidade da educação universal básica.
Políticas afirmativas consistiriam em formas ineficientes de enxugar gelo.
Há, por fim, aqueles que argumentam que as
políticas de ação afirmativa constituem uma verdadeira ameaça a princípios e
valores da ordem liberal democrática, como a igualdade perante a lei, a
excelência e a meritocracia. A equiparação das bancas de heteroidentificação
aos tribunais é a expressão mais constrangedora dessa tese. As críticas mais
comuns são redução da excelência acadêmica ou da eficiência dos serviços
públicos.
O fato é que as profundas e persistentes
desigualdades raciais, econômicas e sociais, que se entrelaçam e se reforçam
mutuamente, não foram abaladas pelas políticas chamadas universais nos
primeiros cem anos de nossa República. Destaque-se que até 1990 apenas 40% da
população havia concluído os primeiros quatro anos do ensino fundamental. A
porcentagem de negros no ensino universitário não ultrapassava um dígito,
especialmente em cursos como medicina, direito ou engenharia.
Da mesma forma, as posições de comando, nas
esferas pública ou privada, foram monopolizadas por pessoas brancas. Aos negros
foram destinadas as funções subordinadas e a violência, para que não tivessem
dúvida sobre o seu devido lugar.
O fato é que as ações afirmativas de natureza
racial têm provocado uma autêntica transformação do tecido social brasileiro,
que ficou reprimida por mais de um século após a Abolição. Essas mudanças,
marcadas pela chegada da população negra a espaços que antes eram reservados
apenas aos brancos, como sempre lembra Cida Bento, gera
muito temor entre os brancos, mas também aponta a existência de fissuras no
pacto da branquitude, no dizer de Adilson Moreira.
As ações afirmativas estão mudando essa
realidade de privilégios e discriminação. Seus resultados devem ser testados e
seus processos corrigidos e aperfeiçoados.
Só não podemos nos deixar iludir pela
retórica da reação, que se empenha em deixar tudo como está.
Verdade.
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