O Estado de S. Paulo
Sem ter mais identidade autêntica, a espiral de decadência do esporte está bem próxima da depressão clínica a que chegou o futebol. Só o tempo dirá para onde estamos indo
Desdenhar das ilusões, do devotamento e do
entusiasmo do torcedor; não entender o papel dos jogos como educador coletivo
de multidões apaixonadas; e estimular a desconsideração pela história de
profissionalismo dos autênticos campeões mundiais é como entorpecer o cavalo
para mantê-lo nas rédeas de modo mais fácil. Na história do futebol atual, a
atrofia da imaginação que o cerca, reduzindo tudo ao prazer e risco do negócio,
nega sua tradição, sua civilidade, seus rituais e interação social e, alienado
em relação ao seu passado, pode significar outra coisa, menos esporte.
O torcedor dos clubes talvez seja aquele que, por sua bondade e sua lealdade, se torne o mais facilmente explorado, pela facilidade com que pode ser usado. Sem carecer de nenhum defeito, sem amenizar nenhuma diferença entre eles, a maioria dos clubes parece singularmente hábil na arte do embuste, sem se vincular ao dever de ver o esporte como deveria ser.
A arrecadação compensa a falta de virtude não
cobrando nada dela, a faz mesmo um desperdício. O sentimento de sua maior
vantagem é encontrar cada vez mais formas de engajamento das torcidas, sem
nenhuma penalidade por descaracterizar todos os símbolos de sua história de
torcedor. Avança sobre tudo, cada vez mais retrocede em princípios. As mudanças
em voga no mundo do futebol transbordam em deslizes. Por trás da sua força, a
falta de graça é ter o torcedor como vasilha humana receptiva.
Sem a passividade do torcedor, o poder dos
clubes não cumpriria seu destino. Há clube que está à frente de seu tempo, mas
não está no caminho certo; há outro que pode estar no caminho certo, mas não é
o clube certo para enfrentar o desafio do caminho. Rendidos aos patrocinadores,
vendidos aos compradores de marcas que lambuzam de manteiga todos os lados do
pão que compraram, não existem mais técnico, time, história ou uniforme.
Insolentes na facilidade, os clubes de donos de marcas ensinam seus torcedores
a se emocionar com clichês, mudando o nome do clube para o nome da marca de
salsicha ou remédio para fixar a amnésia.
Os clubes de futebol são hoje outra coisa,
sem sabedoria diante da pressão para fazer dinheiro que lhes cobra o
compromisso com o salário de tanto jogador ruim-milionário, butique sem
cultura, morrendo de vontade de ser amado, admirado. Todo o glamour do jogador
medíocre-bilionário vem, no campo, dos disparates que despeja sobre a bola e,
fora dele, da autópsia que revela seu caráter. Sua celebridade é perceber que é
mais fácil e agradável fracassar como atleta e tratar de fritar sua alma no
inferno do ouro de tolo onde os petro-reis compram seu séquito. Jogadores
cobiçosos, tortos de bobos, que estragaram toda uma geração para o futebol, são
como pessoas ambiciosas que entram na cadeia alimentar uns dos outros agrupadas
em torno do transe de seus apetites.
Nesta confusão de permissividade, nas horas
que antecedem seu fim como atletas, oferecendo aos torcedores a morte do
esporte, não tendo nada para dar, não querendo de nada se separar, o futebol
moderno percebeu que ninguém ali no campo vale mais do que um outro. Sem
coragem para rifar a personalidade medíocre do badalado, acaba tendo menos
lucro do que se apostasse no talento do sincero, sem precisar apaziguar sua
vaidade. O gênio humilde e barato não tem vez no mundo do esquisito fraude
cara. A larga tolerância com as manias do perfil neurológico do atleta
egoísta-fútil e antissocial revela o triunfo do comércio de pernas aflitas
sobre a história majestosa do futebol como esporte que atletas exemplares como
Pelé consagraram.
O time do laticínio vendeu o jogo para o time
da salsicha enlatada para favorecer o time da fralda descartável. O público de
um foi posto para fora e, sem adversário, o público do outro não pode comemorar
a vitória, que vai ser contestada nos tribunais. O campeonato não pode mais ser
jogado como competição esportiva que consagra as torcidas nos estádios. A
Justiça segregadora, sócia do apartheid, não vê chance no discernimento da
segurança pública nem na inteligência dos bons contra a fúria dos furiosos. Com
isso, facilita os negócios do novo cartola para conspirar em sua caixa-forte
exclusiva como dono de time comprado.
Robô de apostas, sem saber mais qual o número
de sua posição no campo, qual camisa vai vestir, tal simulação de jogador é
mercadoria de varejo, enquanto tenta fazer o gol que não sabe mais fazer. A
“graça infinita”, que fez a glória do futebol, lembra o caudaloso, comovente e
entristecedor romance de mesmo nome de David Foster Wallace, em que o
calendário dos meses e dos anos foi comprado pelas grandes corporações, levando
a vida humana para o mundo dos negócios nebulosos.
Sem ter mais identidade autêntica, tantos são
os uniformes; podendo mudar de nome a cada novo patrocinador; aceitando juiz
manipular resultado, dono demitir técnico antes de o jogo acabar; contando com
torcedor que sofre sem saber por quê; não havendo mais a beleza dos duelos de
bandeiras e torcedores em jogo de torcida única, etc., a espiral de decadência
do esporte está bem próxima da depressão clínica a que chegou o futebol. Só o
tempo dirá para onde estamos indo.
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