Folha de S. Paulo
Bolsonarismo acredita num governo de
vontades, não num governo de leis
Os bolsonaristas lapidaram a convicção de que
estão vivendo sob uma ditadura do
Judiciário. Já estavam convencidos disso quando Sara Winter guiou seus
exércitos num cerco de intimidação à sede do STF, para mostrar
com foguetes e o rugir da multidão que maiores são os poderes do povo.
Ou quando Sérgio Reis, Zé Trovão, Roberto Jefferson e tantos outros propagavam uma peculiar teoria democrática segundo a qual o povo bolsonarista havia adquirido o direito moral de coagir, intimidar e punir os membros do Poder Judiciário pelo crime de impedir que o governo usasse o Estado como bem lhe aprouvesse. Uma crença alimentada pelo ex-presidente quando a cada contrariedade desferia impropérios contra juízes, explicava aos seus seguidores que era decente desrespeitar a Corte e prometia que cedo ou tarde iria medir forças com o tribunal e mostrar quem é que realmente mandava neste país.
Toda vez que o Judiciário impediu Bolsonaro
de violar direitos, abusar do poder ou desrespeitar a lei, isso foi
interpretado como prova de uma atitude ditatorial. Segundo o bolsonarismo, quem
vence uma eleição presidencial ganha o direito de moldar o Estado, a
Constituição e a sociedade conforme seus projetos e caprichos. Como uns juízes
que não foram eleitos se atrevem a contrariar um presidente eleito
democraticamente sem violar a democracia?
Inúmeras vozes radicais de direita na esfera
pública digital aprontaram o diabo durante a hegemonia do bolsonarismo.
Colocaram em risco a população com mentiras e meias verdades durante a
pandemia, espalharam o pânico moral para destruir a oposição às suas pretensões
eleitorais, ameaçaram juízes do STF e suas famílias, atuaram deliberadamente
para destruir a credibilidade do processo eleitoral brasileiro, mobilizaram
pessoas para uma tentativa de abolição violenta do Estado de Direito. Mas cada
vez que algum juiz do STF tomava providências para impedir aquele estado de
coisas, compartilhava-se mais uma rodada de comprovação empírica de que uma
ditadura togada varria a esfera pública para violar a liberdade de expressão
dos bolsonaristas.
Nada há que possa ser feito contra golpistas
ou sediciosos antidemocráticos que na leitura bolsonarista não sirva como
comprovação do que já se sabe: estamos sob uma ditadura. Prender e processar os
extremistas que foram incendiar os Três Poderes no 8 de Janeiro, naturalmente,
não poderia ser compreendido de outra forma.
Não é à toa que foi exatamente nesses termos
que Elon
Musk se referiu a Alexandre
de Moraes na semana passada: um ditador que tem Lula na coleira, aos
seus pés. Moraes sintetiza para os extremistas de direita o Poder Judiciário
que diz "não" aos seus apetites e vontades.
Muita gente andou dizendo que o ataque de
Musk teria sido uma reposta a eventuais abusos do ministro. Não tenho recursos
para julgar o mérito da alegação de que Moraes tenha cometido abusos e estou
pronto a concordar que essa discussão mereça ser feita. Faço notar, entretanto,
que a fórmula ideológica segundo a qual "qualquer ação que freie, controle
ou puna Bolsonaro e o bolsonarismo é um ato indevido e antidemocrático"
precede de muito os inquéritos do 8 de Janeiro ou a prisão de pessoas que
usaram o espaço público para atacar o STF.
O bolsonarismo acredita num governo de
vontades, não num governo de leis, é do seu DNA; embora só o segundo seja
compatível com um regime democrático. Essa briga, desculpem, não é com Moraes,
é com o que ele representa.
Bolsonaristas sempre alternaram, como em um
game, entre o modo vitalista e o modo vitimista, conforme suas conveniências.
Como todo extremismo de direita, gosta de exibir um "ethos" viril,
afirmativo, arrogante, que despreza fracos e perdedores e passa por cima de
qualquer força. Por outro lado, como um identitarismo de direita, adora
mostrar-se perseguido, cercado de malignos e poderosos inimigos por todos os
lados, uma minoria moral contra a qual se levantam as forças do mal em uma
conspiração em que estão todos envolvidos.
A ideia da "ditadura do Judiciário"
faz parte do modo vitimista que passou a ser predominante a partir de 2022. A
figura do Malvado Alexandre, devorador de direitos e liberdades, implacável e
sem coração, coaduna perfeitamente com o imaginário paranoico de uma facção que
sente agora que está por baixo, mas que não faz muito tempo rugia e mostrava os
dentes, ameaçava soltar as Forças Armadas contra os inimigos e fez planos
explícitos de tomar o poder à força e colocar em correntes o próprio Alexandre
de Moraes.
Perfeito.
ResponderExcluirMagnífico!
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