O Globo
Black Power foi substituído por políticas
identitárias oficialistas, articuladas nas reitorias e nos gabinetes
parlamentares
A foto, de autoria anônima, correu mundo em
julho de 1972. Jane Fonda, sentada numa bateria antiaérea norte-vietnamita,
tornou-se “Hanói Jane”. Mais tarde, a protagonista de “Barbarella” (1968)
pediria desculpas pela imagem “que me machucará até eu morrer”. Na Rússia de Putin,
empregar a palavra “guerra” para fazer referência à invasão imperial da Ucrânia
pode dar cadeia. Nas democracias, não é proibido criticar o próprio governo, e
até a própria nação, mesmo fazendo propaganda de um inimigo.
A história da foto começou no início de 1968 com a Ofensiva do Tet, no Vietnã, que galvanizou o movimento antiguerra nos Estados Unidos, seguida pelo assassinato de Martin Luther King, em abril, fonte direta da rebelião negra no Harlem e indireta da ocupação estudantil do Hamilton Hall, na Universidade Columbia. Foi durante o ápice da agitação universitária, mas sem conexão com ela, que o palestino Sirhan Sirhan assassinou Robert F. Kennedy, estreitando a disputa pela indicação democrata ao vice Hubert Humphrey e ao candidato antiguerra Eugene McCarthy.
Na volta seguinte do parafuso, os líderes da
organização Estudantes por uma Sociedade Democrática (SDS) aliaram-se ao
movimento Black Power, imaginaram que a guerra de libertação vietnamita e a
luta antirracista nos Estados Unidos eram lados de uma única moeda e trocaram a
ideia de “resistência” pela de “revolução”.
A Convenção Democrata em Chicago, em agosto,
realizou-se sob o ruído de uma batalha campal de dias entre manifestantes e
policiais. O SDS uniu forças com o Youth International Party (YIP), que incutiu
a política na contracultura dos hippies. Abbie Hoffman, líder do YIP, ameaçou
contaminar com LSD as águas da cidade e enviar as hippies mais gatas para
dentro da Convenção, a fim de seduzir os delegados. O prefeito acreditou no
deboche e reagiu intensificando a repressão. No fim, McCarthy perdeu e, em novembro,
exibindo-se como candidato da lei e da ordem, o republicano Richard Nixon bateu
Humphrey.
A volta derradeira do parafuso resultou na
cisão no SDS, da qual nasceu, em 1969, o Weather Underground, nome derivado de
uma célebre canção de Bob Dylan. O grupo almejava derrubar o governo dos
Estados Unidos por meio de uma “guerra revolucionária”. Três de seus militantes
morreram pela explosão acidental da bomba que fabricavam, em 1970. Depois, os
weathermen praticaram atentados com bombas rudimentares contra o Capitólio
(1971) e o Pentágono (1972), sem fazer vítimas.
Mark Rudd, líder do grupo, explicou numa
entrevista de 2004 seus motores ideológicos: os livros de Régis Debray sobre
imperialismo e foco guerrilheiro e a figura de Che Guevara. Ele jamais revisou
suas crenças básicas, mas reconheceu o efeito das ações do Weather Underground:
— As pessoas abandonaram o movimento
antiguerra porque não queriam envolvimento com uma revolução armada.
Também revelou-se perplexo sobre o desvio de
“movimentos de libertação nacional” rumo ao “fascismo clerical”, como
classificou as organizações fundamentalistas islâmicas.
As manifestações antiguerra nas universidades
americanas de hoje não são simples reedição do movimento deflagrado em 1968.
Falta-lhes a contracultura, um Abbie Hoffman, os hippies e uma Barbarella
convertida em “Hanói Jane”. O Black Power foi substituído por políticas
identitárias oficialistas, articuladas nas reitorias e nos gabinetes
parlamentares. Mas a inspiração ideológica é semelhante: a noção de que as
democracias ocidentais são muito piores que os movimentos “decoloniais”. E,
como reflexo de um nítido declínio intelectual, os líderes estudantis atuais
parecem não se preocupar em estabelecer cooperação tácita com o “fascismo
clerical” do Hamas.
Nos Dias de Fúria de outubro de 1968, o lema
de um SDS já radicalizado, escrito por John Jacobs, fundador dos weathermen,
era “trazer a guerra para casa”. O manifesto deles dizia: “As eleições nada
significam — vote onde o poder está — nosso poder está nas ruas”. Nixon, porém,
mostrou-lhes “onde o poder está” e prosseguiu a guerra indochinesa até 1973.
A história se repete? Donald Trump certamente
aposta nisso.
Cruzes!
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