sábado, 25 de maio de 2024

Eduardo Affonso - As veias da América Latina

O Globo

Ariel Palacios diz em livro que compartilhamos com nossos vizinhos muito mais do que gostaríamos de admitir

Nos anos 70, Sebastião Nery começou a publicar o melhor do “folclore político” — histórias pitorescas protagonizadas por esta gente matreira cujo nome o eleitor brasileiro sempre teve por hábito (ou sina) marcar na cédula ou confirmar na urna eletrônica. Uma fauna que ia das raposas felpudas à arraia-miúda (esta, hoje no topo da cadeia alimentar — um cardume chamado Centrão).

Antes, Sérgio Porto já havia deitado e rolado com um elenco de parlamentares, jornalistas, militares, celebridades e afins, que desfilava sua ignorância sobre cultura, ética, democracia, senso de ridículo e outros valores já então ameaçados de extinção. Quem também andou visitando a História em off do Brasil e do subcontinente foram Leandro Narloch e Duda Teixeira, com seus guias politicamente incorretos.

Não temos muita consciência de sermos latino-americanos. Não falamos espanhol, não tivemos grandes civilizações pré-coloniais e sabemos que samba não é rumba. Mas o jornalista Ariel Palacios, no recém-lançado “América Latina lado B”, mostra que compartilhamos com nossos vizinhos muito mais do que gostaríamos de admitir.

O livro é uma espécie de festival de besteiras que tem assolado a América Latina nos últimos séculos. Passa em revista as várias encarnações do “perfeito idiota latino-americano” — à direita e à esquerda, enfrentando estrangeiros ou em guerra contra o próprio povo. Vai do mexicano Antonio de Santa Anna — que se fazia chamar de “Alteza sereníssima” e organizou o funeral da própria perna — ao venezuelano Nicolás Maduro — que, tendo tornado miserável um dos países mais ricos do continente, recomendou que a população criasse galinhas dentro de casa (1 metro de altura por 60 centímetros de largura seria suficiente para um bom galinheiro doméstico) ou a cunicultura (afinal, como ele mesmo explicou, “coelhos se reproduzem como coelhos”). No caminho, conta do “Generalíssimo” Trujillo, ditador da República Dominicana que rebatizou a capital do país em homenagem a si mesmo, e de Fulgencio Batista, que deu uma festança de despedida na véspera de saquear Cuba e fugir do próximo saqueador, Fidel Castro. Da necromaníaca Argentina à cleptocrática América Central, tudo funciona como uma lente de aumento para nossa realidade.

 

Não temos Macondo, mas tivemos Mombaça. Durante uma viagem do titular, o presidente interino, Paes de Andrade, foi num comboio aéreo — 11 aeronaves! — inaugurar uma agência bancária em sua cidade natal, tornada capital federal por um dia. Não tivemos estupradores em série, como o paraguaio Stroessner, mas não nos faltam machistas (o que dizia ter “aquilo” roxo, o que fingia pagar flexões para demonstrar virilidade e mandava “abraços héteros”, o que acha que máquinas de lavar são muito importantes para as mulheres).

A história política latino-americana, recontada por Palacios, mostra que nosso atraso talvez não possa ser debitado (apenas) aos culpados de sempre — o imperialismo ianque, o colonialismo europeu, a luxúria do clima tropical.

Caetano Veloso perguntou, retoricamente, se “nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos”. Essa América está cada vez menos católica, mas enquanto permanecer caudilhista e antiliberal, fazendo rodízio de populismos, suas veias continuarão abertas. Para o trágico e para o cômico.


Um comentário:

  1. No Brasil cresce o número de evangélicos,não sei nos outros países.

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