O Globo
O PT não conseguiu processar um fato: muitos que se beneficiaram de suas políticas têm valores conservadores
No dia 4 de março, o presidente Lula enviou
ao Congresso um ambicioso Projeto de Lei para regulamentar o trabalho por meio
de aplicativos de transporte, o PL dos Aplicativos. O texto contém dispositivos
sobre salário mínimo, jornada de trabalho, sindicalização e contribuições para
a Previdência.
Ao anunciar o projeto, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou que os
motoristas sofrem de “falsa sensação de liberdade”, e que são “escravizados por
longas jornadas e baixa remuneração”.
A reação do público-alvo do PL, no entanto, revelou uma realidade mais complexa. Motoristas realizaram protestos em várias cidades, e o projeto enfrenta uma batalha difícil no Congresso. Os manifestantes alegam que as novas medidas são dispensáveis e provavelmente prejudiciais. Embora reconheçam as difíceis condições de trabalho, são céticos quanto à introdução pelo Estado de novas regras que podem, no final das contas, afetar seus ganhos.
Além de paternalismo condescendente, o
Projeto de Lei reflete, acima de tudo, certas convicções arraigadas do PT,
partido que brotou das greves dos metalúrgicos do fim dos anos 1970 e permanece
profundamente associado ao sindicalismo fabril. O PT não compreendeu as
profundas mudanças demográficas das duas últimas décadas. Bolsonaro, sim, soube
discernir: o Brasil é cada vez mais um país de classe média baixa, desiludida
com a corrupção, os serviços públicos e o ambiente de negócios. Lula tem lutado
para conquistar esse grupo, enquanto a direita o corteja com enorme sucesso.
Em certa medida, a vitória de Lula em 2022
foi mais um repúdio a Bolsonaro que um endosso a Lula. Foi por margem ínfima. O
PT, ciente disso, se empenha para atrair o 1,5 milhão de “trabalhadores
plataformizados”. Mas a esquerda não consegue imaginar que eles sejam qualquer
coisa senão mão de obra explorada, apesar de valorizarem a autonomia, além da
renda 5,4% superior à média nacional. Cabe perguntar: a quem o PL realmente
pretende beneficiar, os motoristas ou os sindicatos simpáticos ao PT?
Ironicamente, foi Lula, em seus primeiros
mandatos, que produziu essa nova classe média, com políticas que reduziram a
desigualdade e aumentaram a prosperidade. Por mais que a direita relute em
admitir, Lula tirou 20 milhões da miséria, com melhoras expressivas em
educação, saúde e moradia, permitindo acesso a um nível de consumo antes
impensável.
Mas, tendo criado a nova classe média, a
esquerda simplesmente a abandonou. O PT não conseguiu processar um fato: muitos
dos que se beneficiaram de suas políticas têm valores conservadores. Além
disso, se veem como batalhadores e empreendedores. Suas demandas não são por
assistência, mas por um caminho desimpedido. Certamente, não se sentem
representados pela velha estratégia dupla do PT de concentrar-se em políticas
sociais para os segmentos mais pobres, enquanto presenteia subsídios generosos
a indústrias “sagradas” como a automotiva. Perdeu-se de vista a classe C, 55%
da população.
Não se trata, de forma alguma, de abandonar
os mais pobres. Mas a esquerda precisa também de um programa para a nova classe
média, abordando segurança pública, acesso ao crédito, desburocratização e
combate à corrupção. Até agora, além da recente reforma tributária, Lula
forneceu poucas soluções nessas áreas. Enquanto Bolsonaro também falhou em
atender a essas demandas, a direita pelo menos tem feito referência consistente
a elas.
O PT é hábil em agradar à Faria Lima. Os
principais banqueiros e economistas pró-mercado declararam apoio a Lula no
segundo turno em 2022. Mas a elite financeira não tem peso eleitoral
suficiente. São os milhões de eleitores de classe média baixa, desiludidos, que
Lula precisa reconquistar.
Caso contrário, cairão nos braços, mais uma
vez, de algum populista de extrema direita. E, desta vez, talvez seja alguém
muito mais astuto. Medidas econômicas inteligentes ajudarão em muito a remediar
a polarização do país.
*Felipe Krause é cientista político e professor da Universidade de Oxford (a versão em inglês deste artigo foi publicada originalmente na revista Foreign Policy)
''O PT é hábil em agradar à Faria Lima'',verdade.
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