O Estado de S. Paulo
Processo de reconstrução depois da calamidade não é fácil. Em primeiro lugar, a maioria admite, é preciso fazer algo diferente do que existia antes do desastre
Ficou bastante claro agora, depois das
enchentes no Sul, que a pauta ambiental é prioritária. Não tenho a pretensão de
esgotá-la, mas gostaria de tocar em três pontos: a reconstrução do Rio Grande e
suas lições; a chegada de La Niña e possíveis consequências; e o impacto da
crise climática nas eleições municipais deste ano.
O processo de reconstrução pós-calamidade não é fácil. Em primeiro lugar, a maioria admite, é preciso fazer algo diferente do que existia antes do desastre. Na verdade, existe um movimento intitulado BBB em inglês (Build Back Better), que pode ser uma espécie de norte para o processo. De certa forma, já foi utilizado no Japão, após o tsunami.
A reconstrução em outros lugares importantes,
como Nova Orleans, mostrou que não é um processo neutro, mas resultado de uma
forte luta de interesses. Lá, a grande preocupação da elite branca foi a de
reduzir a população pobre e aproveitar o êxodo dos negros para recuperar o
poder tradicional, que foi perdido em termos eleitorais quando Nova Orleans
passou a ter dois terços da população negra.
Parece estranho aos brasileiros envolvidos na
solidariedade, mas durante o Katrina, em Nova Orleans, a polícia armada impedia
que negros fugindo das águas cruzasse uma ponte sobre o Mississippi para
proteger as áreas dominadas pelos brancos.
O outro ponto da agenda que precisa ser
examinado é quase urgente: a chegada de La Niña. A previsão não é para antes de
julho, mas o fenômeno trará consequências. La Niña produz efeitos diferentes de
El Niño. Ambos são filhos dos ventos alísios. No caso do menino, os ventos
sopram com fraqueza e as águas esquentam; no caso de La Niña, são mais velozes
e a água do Pacífico, na costa peruana, esfria.
Vale a pena examinar a chegada de La Niña,
que pode trazer grandes chuvas para a Amazônia e o Nordeste e provocar secas no
Sul. Há, ainda, algum tempo para estudar sua intensidade e examinar os pontos
fracos da experiência anterior.
Fizemos isso com El Niño. Em 1997, no
Congresso Nacional, criou-se uma comissão especial que produziu um excelente
documento indicando as principais medidas preventivas contra o fenômeno.
Recentemente, por iniciativa do senador
Esperidião Amin, foi realizado de novo um debate sobre o El Niño e suas
consequências. Infelizmente, essas iniciativas não influenciaram muito a
política de prevenção.
Mas a simples reunião de alguns
representantes da Defesa Civil dos Estados serviu de oportunidade para debater
os pontos fracos e examinar o que poderia ser feito.
As eleições municipais deste ano são uma
grande oportunidade de mudança. O exemplo do Rio Grande do Sul poderá ser
estudado, mas, independentemente até desse estudo, é evidente que muitos
fatores vulneráveis existem em toda parte e já foram exaustivamente discutidos:
gente morando em área de risco, rios assoreados, destruição da mata ciliar,
bueiros entupidos, avanço da especulação imobiliária.
Ainda assim, será uma tarefa importante
formular o que há de comum em cada cidade e o que também há de específico.
Olhando bem, cada uma delas tem problemas próprios. Os últimos números indicam
que 193 cidades brasileiras não têm sequer uma Defesa Civil organizada.
A necessidade de informar os eleitores sobre
os temas centrais de prevenção pode contribuir para que eles exijam
compromissos claros de seus candidatos na eleição municipal.
Mas a adoção de planos de desenvolvimento
municipal isolados pode significar uma vulnerabilidade. Os governos federal e
estadual têm uma visão mais ampla das regiões. São membros natos dos Comitês de
Bacia Hidrográfica, e grande parte da planificação dependerá de uma visão clara
das necessidades da bacia hidrográfica.
Foram criadas três importantes leis para
regular esta questão hídrica no Brasil, e uma delas previu o Comitê de Bacias.
No início, a preocupação fundamental era cobrar pelo uso da água, uma vez que é
um insumo coletivo muito aproveitado por empresas privadas. O dinheiro seria
retornado para a conservação da bacia. Mas, vendo o mundo com as novas
necessidades, o Comitê de Bacia passa a ter responsabilidades muito mais
amplas. Ele precisa pensar o rio e seus afluentes, a melhor maneira de
protege-lo para que não represente um fator de agravamento nos eventos
extremos. O Comitê de Bacia pode saber se a obra numa cidade afeta ou não as
cidades rio abaixo.
A população tem em seu poder um grande
instrumento de defesa, que é o voto. Mas é preciso que conheça também este
outro instrumento que transcende o voto local: a maneira como a região pode
manejar os recursos hídricos não só para que não falte água, mas também para
que as águas não sejam tão perigosas com as mudanças climáticas.
Menciono esses três temas porque acho que
estão na ordem do dia. Por meio do interesse mais imediato das pessoas, é
possível atraí-las para a questão ambiental, por tanto tempo relegada como algo
de vanguarda, um tema de ecochatos. Em defesa deles, é possível dizer duas
coisas. Uma delas, muito grave: eles tratam da sobrevivência da vida humana no
planeta. A outra, bem mais leve: em que tipo de atividade coletiva humana não
existem alguns chatos?
Verdade.
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