O Globo
A sociedade gaúcha tem grande potencial e
pode exigir uma reconstrução que supere os erros do passado
Nos dias das grandes enchentes no Sul, morreu
no Rio um gaúcho especial, o ator Paulo César Pereio. Fomos amigos, vivemos
juntos alguns meses num pequeno apartamento da Figueiredo de Magalhães,
em Copacabana.
Não tínhamos onde morar e aproveitamos que Tarso de Castro, outro gaúcho,
precisava sumir para tomar conta do lugar. Era o momento do pós-golpe de 1964,
e Tarso se sentia visado por ter dirigido o Panfleto, um jornal de Brizola.
No mesmo prédio, alguns andares acima, viviam duas recém-chegadas garotas gaúchas. Uma gostava de literatura, outra era cantora. Eu me interessava pela literatura do Sul, pois tinha lido um conto de Josué Guimarães, publicado na revista Senhor. A cantora se apresentava no Beco das Garrafas e alguns anos depois se tornou famosa: Elis Regina.
Pereio sofria de uma doença hepática, mas
certamente estava preocupado com o Sul. Tinha um temperamento difícil, mas
aprendi a lidar com ele. Às vezes, fiz brincadeiras que ele não aprovava. Uma
delas foi escrever que no palco, em vez de dizer “não, Antígona”, ele disse
“não, Cleópatra”. Era um excelente ator e às vezes usava sua bela voz em
propaganda, para complementar o magro orçamento.
Ao voltar do exílio, interessei-me pelo Sul,
pois o Rio Grande era uma espécie de berço do movimento verde. Em 1971, foi
criada a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural. Tinha à frente uma
figura de temperamento forte: José Lutzenberger. Foi secretário de Collor, um
governo que hospedou a maior conferência ambiental do Pós-Guerra, a Rio-92, e
demarcou as terras ianomâmis, gesto que hoje incendiaria o Congresso Nacional.
Porto Alegre teve talvez o primeiro vereador
ecologista do Brasil, e hoje, quando observamos a tragédia, vemos o imenso
potencial subjetivo de todo o estado. Milhares de voluntários, um resgate
meticuloso de pessoas e animais.
Trabalhei na imprensa de lá, Zero Hora e
Rádio Gaúcha, participei do excelente programa de debates “Fronteiras do
pensamento”, viajei documentando o estado: São José dos Ausentes, vendo os
cavalos no sol do inverno; cantos em talian nas parreiras de Serafina Corrêa;
as luzes do espetáculo natalino em Gramado. Dava para encher uma página com
tantas memórias.
Mas a síntese delas é que, para mim, a
sociedade gaúcha tem grande potencial e pode exigir uma reconstrução que supere
os erros do passado, adapte o estado às mudanças climáticas e seja uma espécie
de farol para os novos tempos no Brasil.
A política profissional ainda é um foco de
resistência. A prefeitura não investiu na prevenção em Porto Alegre. Apenas uma
deputada gaúcha, entre 31, destinou verbas para conter desastres naturais, e o
primeiro governo de Eduardo Leite mexeu
em 480 pontos do Código Ambiental para flexibilizá-lo. A própria indicação do
representante federal na reconstrução, Paulo Pimenta,
ainda tem um viés político-eleitoral que não ajuda uma tarefa tão tecnicamente
complicada como a que o Rio Grande tem pela frente.
No entanto o movimento positivo que existe na
sociedade pode estabelecer um vínculo com a política e rejuvenescê-la diante da
grandeza da tarefa. É falsa a discussão que separa sociedade de governo — ambos
são necessários.
Na tragédia, o Rio Grande já superou pequenas
divisões cotidianas, gremistas e colorados por exemplo. Todas as outras podem
ser ultrapassadas também, porque não se joga ali apenas o futuro de uma
fantástica região, mas o despertar de todo um país para a nova realidade
climática, dado essencial para nossa sobrevivência.
Existe uma luz meridional que sempre encantou
meus olhos de fotógrafo amador. Minha esperança é que ela brilhe e se
transforme em realidade dentro de todos nós, que precisamos ver um pouco de
futuro, além das nuvens cinzentas dos eventos extremos.
Excelente!
ResponderExcluirGabeira vendo luz no fim do túnel.
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