Folha de S. Paulo
Recriar confiança básica é mais importante
que refutar fake news
O Estado não faz nada, é incompetente no
pouco que faz e até mesmo sabota os esforços da iniciativa privada. Segundo
levantamento do professor da USP Pablo
Ortellado, 31% dos conteúdos compartilhados sobre as enchentes no
RS na rede social X tentam
descredibilizar o poder público. Em muitos, há informações falsas ou
exageradas, como a de que o governo teria
negado ajuda do Uruguai,
que caminhões com
donativos estão sendo barrados por falta de nota fiscal ou
mesmo que toda a tragédia foi planejada.
Num momento de crise, com nervos à flor da pele, sociedade polarizada e smartphones nas mãos de todos, é quase inevitável que muito conteúdo falso e/ou com forte teor político venha à tona. Misturam-se aí várias motivações: busca por fama ou dinheiro, oportunismo político e até mesmo equívoco sincero na intenção de ajudar. A questão é como reagir a ele.
A reação da Secom do governo federal até
agora tem sido o confronto direto. Em primeiro lugar na Justiça,
segundo ofício
enviado ao ministro da Justiça para tomar medidas legais contra
diversos perfis. É uma peça de indisfarçável autoritarismo. Dentre os conteúdos
que levaram a Secom a recorrer à Justiça está a opinião veiculada por uma
influenciadora de que "o Estado não estaria fazendo nada, mas apenas a
sociedade civil".
É óbvio que essa opinião é totalmente sem
base —e que ela parte de certos interesses políticos—, mas ela é isto: uma
opinião, e não a asserção de um fato concreto que não ocorreu e que pode
enganar as pessoas. Imagine a distopia de milhares de cidadãos sendo
processados —multados e quiçá presos— por escrever textos ou gravar áudios com
exageros e críticas injustas ao governo. A boa notícia é que, além de
ditatorial, isso seria impossível. A não ser que optemos por um controle das
redes de nível chinês (que inclui banir aplicativos estrangeiros), o governo
não tem como lidar com o volume de conteúdo gerado.
Numa coisa estou de pleno acordo com o ofício
da Secom: "É fundamental que ações sejam tomadas para proteger a
integridade e a eficácia das nossas instituições frente a tais crises".
Mas essas ações têm que ser pensadas com inteligência, para não tornarem o
problema ainda maior.
Olhamos muito para o lado da oferta —quem
veicula as tais fake news e
conteúdo polarizante—, e pouco para o da demanda: quem consome e compartilha. O
post é compartilhado na medida em que entrega o que o público quer, ou seja,
confirma seus desejos e vieses. E hoje, parte expressiva da sociedade olha com
desconfiança tudo o que venha das instituições estabelecidas, vistas como corruptas e
incompetentes.
Reconstruir
uma confiança básica é muito mais importante do que refutar uma
ou outra fake news que circula graças à desconfiança. E isso significa baixar a
sensação de que metade da população (no Sul, muito mais) é vista como inimiga
pelo governo. Falar com prontidão, simplicidade e transparência pode ser melhor
que acusar e processar.
Surgiu a denúncia de que o governo rejeitou a
ajuda do Uruguai? Em vez de sair acusando de fake news —que foi o que o governo
fez— por que não explicar a realidade toda de maneira aberta? O Uruguai
ofereceu um avião, que foi rejeitado pelas dificuldades técnicas de trazê-lo, e
um helicóptero, que foi aceito e já estava em operação. Baixar a temperatura em
vez de partir para o combate. E, claro, estar sempre comunicando e contando sua
história de "união e reconstrução". Imagens de funcionários públicos
e voluntários trabalhando lado a lado fazem um bem maior do que ficar
discutindo qual lado é melhor.
Os governos,estadual e federal,estão fazendo o que pode.
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