O Globo
Contrariar o avanço do pensamento autoritário, com a sua cultura da mentira, da demagogia e do ódio, é um grande desafio do nosso tempo
Um menino de 9 anos, de origem nepalesa, foi
espancado por cinco colegas, que gritavam “volta para a tua terra!”, enquanto
um sexto filmava a cena.
O episódio, ocorrido numa escola de Lisboa, é mais um,
entre vários, que testemunham o crescimento do racismo e da xenofobia em Portugal.
O surgimento do Chega — partido de extrema direita que nas eleições do passado mês de março conseguiu 50 lugares no parlamento português — vem legitimando e fortalecendo movimentos radicais, alguns deles assumidamente neonazis, que até há poucos anos não mobilizavam senão meia dúzia de sujeitos espiritualmente deformados.
André Ventura, o líder do Chega, começou por
atacar a comunidade cigana, radicada em Portugal há centenas de anos, antes de
se voltar contra os imigrantes. Ventura esforça-se por ligar a entrada de
estrangeiros no país com o aumento da criminalidade. É um absurdo total, desde
logo porque ao mesmo tempo que a imigração vem subindo, a criminalidade tem
vindo a decrescer. Portugal continua sendo um dos países mais seguros do mundo,
ocupando a sétima posição no Índice Global da Paz.
Antes de se reinventar como extremista de
direita, Ventura era um plácido social-democrata, que tentou uma carreira como
escritor de romances eróticos, e defendia a eutanásia, o aborto e a
descriminalização das drogas leves. Na sua tese de doutoramento, criticou a
discriminação das minorias — nomeadamente dos muçulmanos — e o endurecimento
das leis criminais.
Em diversos outros incidentes, na cidade do
Porto, grupos de homens, armados com bastões, tacos de basebol e armas de fogo,
assaltaram apartamentos ocupados por imigrantes magrebinos e latino-americanos,
ferindo vários com gravidade. Mais uma vez, Ventura atribuiu as agressões à
irritação dos moradores contra os imigrantes, que estariam praticando assaltos.
Não se preocupou em demonstrar a ligação entre as vítimas da violência racista
e os supostos bandidos.
Os imigrantes, esses sim, sentem-se
inseguros, pois o que vem aumentando são os crimes de racismo e de xenofobia.
Existe uma ligação clara entre o acréscimo da criminalidade racista e a
popularização das falas de ódio por parte de pessoas e de instituições que
representam a própria democracia.
Discursos contra imigrantes, no abstrato,
acabam sempre ferindo com pedras reais pessoas concretas.
Sempre houve racistas em Portugal.
Simplesmente, por medo ou por vergonha, a esmagadora maioria não se atrevia a
expressar publicamente os seus preconceitos.
O espancamento do menino nepalês comove e
horroriza qualquer pessoa sensata. Os colegas que o agrediram estão, afinal,
reproduzindo o exemplo dos pais.
A democracia portuguesa, como tantas outras
em todo o mundo, deixou-se contaminar pelo insidioso rancor do populismo (vamos
chamar-lhe assim). Contrariar o avanço do pensamento autoritário, com a sua
cultura da mentira, da demagogia e do ódio, é um dos maiores desafios do nosso
tempo. Aliás, todos os outros grandes combates que enfrentamos, incluindo os
relacionados com a crise climática, dependem da preservação da democracia.
Verdade.
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