Correio Braziliense
A atuação da Corte é polêmica, seja por causa
do protagonismo político de alguns ministros, seja por decisões contraditórias
Quarto presidente norte-americano, James Madison teve um papel fundamental na elaboração da Constituição e da Declaração de Direitos dos Estados Unidos, com Alexandre Hamilton e John Jay, nos ensaios de “O federalista”, a publicação do fim do século 18 que se tornou um clássico da ciência política. “Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos”, resumiu (“O federalista”, nº 51), ao se referir aos políticos de um modo geral. A citação é oportuna porque estamos diante de polêmicas decisões monocráticas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que parecem mais pautadas pelo jogo político e grandes interesses econômicos do que pela legislação vigente.
Madison dedicou especial atenção à
necessidade de controlar os detentores do poder, porque os homens não são
governados por anjos, mas por outros homens: “Ao constituir-se um governo —
integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens —, a grande
dificuldade em que se deve habilitar primeiro o governante a controlar o
governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo”. Acrescentou: “Não se
pode negar que o poder é, por natureza, usurpador e que precisa ser eficazmente
contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados” (“O
federalista”, nº 48).
Foi com esse objetivo que outro federalista,
Alexander Hamilton, elaborou os seis capítulos (78 a 83) de “O federalista”,
nos quais defende a independência do Poder Judiciário e trata de três questões:
a escolha dos juízes, seus mandatos e divisão de competências com os demais
poderes. Defendeu a nomeação dos magistrados pelo presidente da República, mas
com supervisão do Senado, para que houvesse controle recíproco do Executivo e
do Judiciário. Na Convenção Constituinte, uma ala conservadora resistia à ideia
de que a Suprema Corte pudesse dar a última palavra em questões constitucionais
e resolução de conflitos.
Sem peias, Hamilton disse que o facciosismo
político envenenaria as fontes da Justiça, sendo desaconselhável subordinar o
Judiciário ao Legislativo, impregnado de política e luta entre os partidos.
Temia-se que o poder de dar a palavra final sobre a Constituição à suprema
corte poderia transformá-la num instrumento de tirania, uma vez que não havia
limitação de mandato de seus integrantes. A tese de que a legitimidade popular
deveria subordinar a magistratura, porém, foi rejeitada na Constituição de 1787,
que vigora até hoje.
O Judiciário brasileiro é híbrido. Embora
inspirado na Suprema Corte norte-americana, nossa legislação adota o direito
romano-germânico (civil law), enquanto o sistema jurídico dos Estados Unidos é
anglo-saxão (common law). O objetivo de garantir justiça é o mesmo, porém, a
abordagem e a aplicação das leis são diferentes. No direito romano-germânico,
as leis são codificadas. As decisões judiciais não têm o mesmo peso que no
common law, no qual os juízes criam direito, ao tomar decisões com base na
jurisprudência, que evolui ao longo do tempo. Esse sistema é baseado na ideia
de que a lei deve evoluir de acordo com as circunstâncias e as necessidades da
sociedade.
Liderança moral
No direito romano-germânico, as normas são
hierarquizadas de acordo com sua fonte de origem, sendo a Constituição a norma
fundamental e superior a todas as outras normas. Entretanto, aqui no Brasil,
cresce a influência “americanista” na magistratura, embalada pela
judicialização da política pelos partidos. O chamando “ativismo judicial” em
grande parte decorre de um fator estrutural: o Supremo é instância de recurso e
julga tudo, não apenas as inconstitucionalidades.
Montesquieu estabeleceu a teoria dos três
poderes com base na experiência de “governo misto” da Inglaterra, no qual a
realeza, a nobreza e o povo são obrigados a cooperar em regime de liberdade,
com a divisão em três funções básicas: a legislativa, a executiva e a
judiciária. Nos Estados Unidos, o “governo misto” foi descartado pela própria
independência, o que gerou um impasse entre os constituintes. Grande parte da
elite política local era aristocrática e escravocrata, como o próprio Madison.
Como garantir a liberdade do povo, refreando
as ambições e interesses dos mais poderosos? Na monarquia, as ameaças à
liberdade partiam do Executivo; no regime republicano, o poder se
desequilibraria em favor do Legislativo. A solução encontrada pelos federalistas
foi criar um regime bicameral, no qual o Senado conteria as ambições da Câmara.
Ao mesmo tempo, reforçou-se o Judiciário. O mais fraco entre os poderes, a
Suprema corte foi destituída de iniciativa política, porém, ganhou autonomia e
o poder de interpretação final sobre o significado da Constituição.
Desde a proclamação da República, no Brasil,
o papel do Judiciário foi neutralizado pelo Executivo ou usurpado pelos
militares, com exceção de breves momentos de predomínio do Legislativo, como
nas Constituintes de 1945 e de 1987 e nos 17 meses de regime parlamentarista do
governo Jango (1961-1962). A Constituição de 1988 restituiu a autonomia do
Judiciário.
A importância do Supremo como guardião do
nosso Estado democrático de direito foi mais do que demonstrada durante o
governo Bolsonaro e, principalmente, na tentativa de destituir o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, em 8 de janeiro de 2023. Cabe à corte, como
instituição, exercer uma liderança moral perante a sociedade. Entretanto, sua
atuação muitas vezes é polêmica, seja por causa do protagonismo político de
alguns ministros, seja por decisões contraditórias e/ou incompreensíveis para a
sociedade, a maioria monocráticas. Cabe à Corte conter o seu próprio poder.
Muito bom!
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