terça-feira, 7 de maio de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Deslizes infelizes no país das desigualdades

Valor Econômico

Nada mais trágico para a sociedade brasileira que a perda de reputação do Poder Judiciário

Dia 1º de maio, o site Metrópoles estampou a empolgação do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Fernando Antônio Torres Garcia elogiou a proposta do Senado que turbina os salários de magistrados e promotores. Garcia recebeu R$ 87,7 mil líquidos em fevereiro. O teto do funcionalismo público é de R$ 44 mil.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco prevê um aumento de 5% a cada cinco anos nos salários de juízes e promotores. Segundo a Consultoria de Orçamento do Senado, o projeto é inconstitucional e pode ter um impacto de R$ 81 bilhões aos cofres públicos entre 2024 até 2026.

Questionado sobre a proposta, disse o presidente do TJSP, em declarações prestadas à repórter Hyndara Freitas: “Vejo com muita satisfação. [...] Esse acréscimo de 5% a cada cinco anos não é para tornar ninguém milionário, só vai valorizar o tempo de magistratura”. Garcia acrescentou: “Nós não podemos comparar o salário de um magistrado com um salário de um trabalhador desqualificado. [...] É a mesma coisa que comparar um jogador de futebol que recebe bilhões, com um operário de fábrica”.

Devo afirmar que concordo com a adoção de critérios de remuneração que valorizem as carreiras da magistratura e do Ministério Público. Essa é a regra adotada em todos os países que buscam garantir a independência de juízes e promotores, assim como subtraí-los às tentações que não cessam de mobilizar os senhores do dinheiro.

Isto posto, sou obrigado a considerar os danos causados por sentimentos e pertinências particularistas dos agentes do Estado quando cedem à tentação de se alçarem acima das condições de vida dos homens e mulheres que se esfalfam no trabalho diário. É deplorável observar que a soberba de um alto servidor do Estado possa abrigar tal preconceito.

Nada mais trágico para a sociedade brasileira que a perda de reputação do Poder Judiciário. Não escapa aos olhos dos cidadãos mais atentos que a regra da separação e equilíbrio harmônico dos poderes vem sendo substituída pela autonomização dos estamentos burocráticos, que se apresentam uns diante dos outros como poderes autônomos e rivais preocupados em assegurar as próprias prerrogativas, usurpando a soberania do povo a quem devem a legitimidade de suas ações.

Esta lógica fatal contamina as instâncias decisivas do poder estatal. Não se trata apenas de que as distintas burocracias de Estado buscam abocanhar frações crescentes do orçamento público, causando notórios desequilíbrios entre os mais fortes e os mais fracos. Pior que o pior: comportam-se, diante do cidadão, como forças estranhas e hostis, usurpando os poderes que deveriam ser exercidos em nome do interesse público. As burocracias judiciárias afundam sua reputação no lodaçal do narcisismo bem remunerado.

Entregam-se com os olhos revirados ao brilhareco de 15 minutos de fama. As recentes exibições de narcisismo de autoridades na mídia e nas redes sociais são um exemplo impecável de como os deveres republicanos se dissolvem diante dos esgares incontroláveis da subserviência aos valores do mundo das celebridades, coadjuvada pelo corporativismo pouco recomendável para autoridades que decidem os destinos dos cidadãos e cidadãs. Os cidadãos e cidadãos ainda vão ficar à mercê de um juiz influencer.

Os processos sociais e econômicos que assolam o mundo contemporâneo são cruéis em suas contradições: adulam o sucesso individual e, no mesmo movimento, exercem o controle dos cidadãos no propósito de aniquilar os resíduos de sua capacidade crítica. Na era do cyberespaço, o domínio dos corações e das mentes é exercido com os métodos desenvolvidos nos laboratórios midiático-repetitivos encarregados de remover as sobras de razão que os indivíduos imaginam preservar.

Vou repetir a fala do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Nós não podemos comparar o salário de um magistrado com um salário de um trabalhador desqualificado. [...] É a mesma coisa que comparar um jogador de futebol que recebe bilhões, com um operário de fábrica”.

É a velha arrogância oligárquica nutrida por uma certeza: somos todos da mesma turma, aquela que manda e desmanda. Há um trânsito contínuo de pessoas e de influência entre as esferas do poder: o big business, a grande política, as burocracias públicas; e, muito mais que isso, há a formação de uma cultura comum.

Em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda desvendou um “mistério” (?) da sociedade brasileira. Sob a capa do afeto, o cordialismo esconde as crueldades da discriminação e da desigualdade. Rasgado o véu conveniente da benevolência, emerge da mansidão hipócrita a inclemente violência do mandonismo e da submissão: “O senhor sabe com quem está falando?”. “Coloque-se no seu lugar”.

Minha memória não conseguiu barrar as lembranças que me perturbaram a alma diante das inconveniências das palavras da autoridade judicante. Lembrei-me do discurso pronunciado pelo juiz Luiz Gonzaga Belluzzo (1916-2000), por ocasião de sua aposentadoria:

“Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes; não suportei afetações; as cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes, jamais encontraram agasalho em mim; em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões; - dentro de uma humildade que ganhei no berço, abominei a egomania e a idolatria; não me convenceram as aparências, e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. No exercício das minhas funções de magistrado, diuturnamente, dei o máximo dos meus esforços para bem desempenhá-las/...) em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo; escapei de juízos temerários, tomando cautelas para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão; - e, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência”.

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