domingo, 26 de maio de 2024

Luiz Sérgio Henriques - Esquerda, democracia e despolarização

O Estado de S. Paulo

Se não é novidade, a polarização atual vale-se da velocidade das redes e da quase ilimitada possibilidade de manipulação de consciências

Parece algo distante no tempo, mas pouco mais de 30 anos se passaram desde que pareceram se desfazer no ar as razões da esquerda, identificadas sumariamente com o comunismo histórico e o tipo de sociedade que criou na União Soviética e em seus satélites. O mundo se mostrava plano, os enigmas estavam decifrados. Um certo tédio, aliás, se anunciava: uma democracia formal, de baixa intensidade, poderia apoiar-se indefinidamente em mercados globais e numa cultura de consumo capaz de avassaladora universalização.

Relativamente pouca gente se manifestou contra esse bizarro panorama de terra plana. Na época, num pequeno livro, o italiano Norberto Bobbio teve a coragem de divergir. Sem arroubos retóricos, como de hábito, defendeu a pertinência da oposição entre direita e esquerda no novo contexto global. A velha distinção, nascida casualmente com a distribuição de cadeiras na convenção francesa de 1793, ainda seguiria sendo uma boa chave interpretativa. A igualdade, segundo Bobbio, haveria de se enriquecer com conteúdos novos. Além das diferenças de classe, mal teriam começado a ser arranhadas as de gênero e raça. E o caminho da esquerda, em sentido lato, longe de haver terminado, estava rigorosamente no início.

Impossível esquecer a serena e nem por isso menos incisiva intervenção do filósofo, feita num momento de desorientação entre os críticos da então nova ordem. Paradoxalmente, a ela recorremos quando, poucas décadas depois, o terraplanismo político adquire outros rumos e inéditas dimensões. Na vertigem da crise da globalização e da irrupção das redes sociais, a anterior monotonia de um mundo sem esquerda se vê substituída pela algaravia dos que, de um lado e de outro, promovem a redução de todas as coisas a um combate não menos monótono entre direita e esquerda – ainda por cima, geralmente entendidas nas suas mais elementares formulações.

Não é verdade que a polarização destrutiva dos nossos dias seja uma novidade absoluta. Considerando apenas a política do século 20, regimes totalitários de tipo fascista afirmaram-se com base na desumanização do adversário transformado em inimigo, para usar a imagem muito usada, mas ainda contundente. Os que se opunham valentemente a esse tipo de regime por vezes lutavam o combate errado, vendo a política como contraposição frontal de blocos inconciliáveis. Era a política de classe contra classe, uma variante de jogo de soma zero. Em caso de vitória, no futuro Estado socialista não poderia haver lugar para o “inimigo do povo”.

Se não é novidade, a polarização atual vale-se da velocidade sobre-humana das redes sociais e da quase ilimitada possibilidade de manipulação de consciências à disposição dos autoritários. A desordem informativa que daí deriva não é inocente. Ela tem como alvos preferenciais as democracias ocidentais – uma categoria, a de Ocidente, que aqui não tem conotação geográfica e serve para designar sociedades em que, readaptando José Guilherme Merquior, se possa ser anarquista na cultura e socialdemocrata na política e na economia, sem excluir outras formas de contribuir para o bem comum. O objetivo daquele impulso de destruição não criadora é, precisamente, a divisão da sociedade em campos que se recusam ao mútuo reconhecimento. Deve vencer o mais forte – e o vencedor leva tudo.

Aberrações à parte, como a protagonizada por Hugo Chávez e Nicolás Maduro, é forçoso reconhecer que este é o programa básico do moderno, ou pós-moderno, radicalismo de direita. Em torno da ideia de democracia iliberal articula-se o autoritarismo, ou coisa pior, em escala global. Bem sintomática a rejeição de princípio expressa no conceito. Democracia até pode haver, desde que entendida como eleições plebiscitárias sob o império do medo. As instituições contramajoritárias propriamente liberais, que protegem minorias e controlam o poder, é que devem ser limitadas ou excluídas – por isso, diante do nome liberal é que se coloca o prefixo negativo. A cereja do bolo é o homem forte, o líder providencial, o Pai da Pátria.

O programa dos democratas só pode partir de uma estratégia pertinaz de despolarização. A esquerda, em particular, não estará à altura do seu desígnio histórico de igualdade, caso aceite e reitere, por incapacidade teórica ou inabilidade prática, a divisão da sociedade em metades rivais. Simplesmente, não há projeto transformador viável em tal ambiente de ódio e desavença até afetiva, como hoje se diz. Ao contrário, não por acaso há uma floração de livros e filmes que retratam uma distopia em cujo cerne aparece a guerra civil, o maior dos flagelos, ao entronizar a violência como recurso supostamente legítimo.

A despolarização é o fundamento mais essencial das políticas de frente democrática, que bem ou mal voltaram ao discurso público. Sem tal fundamento, não será possível convocar a generalidade dos atores (inclusive a direita constitucional) para a tarefa comum de defender a convivência civilizada, que, com seus confrontos legalmente regulados, é o oposto exato de qualquer versão do terraplanismo político.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

 

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