Valor Econômico
Catástrofes tanto podem fazer com que a solidariedade invada a política quanto permitir que o oportunismo da extrema de direita se locuplete. É uma escolha
Acorre à tragédia gaúcha uma multiplicidade
de explicações, não-excludentes: chuva sem precedentes na história, exploração
agrícola que, há séculos, devasta a vegetação que poderia reter a chuva,
sistema de prevenção de enchentes deixado à míngua e uma legislação ambiental
destroçada pelos poderes locais e por uma bancada de parlamentares que
capitaneia o negacionismo climático no país. Nenhuma das explicações pode ser
negligenciada na reconstrução do Estado e na chamada à responsabilidade de
gestores e parlamentares num jogo em que todos os pontos estão ligados. A cada
centavo que se tira dos cuidados acumulam-se prejuízos humanos e materiais no
futuro.
Da companhia que os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fizeram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva à sua segunda visita ao Estado, surgiram duas iniciativas - uma boa, a PEC para remanejar 5% da verba de emendas individuais para a prevenção de catástrofes ambientais na Câmara, e uma ruim, o “orçamento de guerra”, que brotou no Senado e, antes de ser abortado, ameaçava dar carona a gastos em nada relacionados à tragédia gaúcha.
Os urubus da tragédia vão dos ladrões que
saquearam casas abandonadas até parlamentares que pretendiam estender a todo o
país o socorro a agricultores vitimados no Estado, passando por desmatadores
que não se inibiram com o ocorrido. O senador Plínio Valério (PSDB-AM), que
presidiu a CPI das ONGs, achou por bem prestar homenagem às vítimas defendendo
mais desmatamento na Amazônia, região vital contra o desequilíbrio climático do
planeta. Subiu à tribuna para atacar a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva,
por sua oposição à BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. “Fui eleito para
defender minha gente, que pisa em ouro mas dorme ao relento”, respondeu, ao ser
indagado sobre seu interesse na exploração mineral na região.
Os urubus também estão pousados nas redes
sociais, seja para atrapalhar as doações, como o fizeram com a campanha de
Felipe Neto, seja para minar os esforços estatais. O influenciador empreendeu
campanha de arrecadação de fundos para a compra de purificadores capazes de
transformar em potável a água de enchente. Ilhados, milhares de gaúchos têm
sido obrigados a escolher entre morrer de sede ou de água contaminada. Pois o
influenciador foi acusado de recolher dinheiro para si, a ponto de os bancos
soltarem um alerta de suspeição nas tentativas de Pix na conta indicada.
Já o bombardeio sobre a ajuda estatal
envolveu parlamentares que não se importaram em deixar sua digital na
exploração da tragédia. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) compartilhou a
“denúncia” de que havia corpos de bebês boiando porque pilotos de lanchas
estavam sendo impedidos de fazer resgate sem apresentar documentação.
O filho do ex-presidente compartilhou esta
“denúncia” de Washington, onde esteve para participar de audiência no Congresso
americano, convocada por deputado trumpista, que discutiu a “crise da
democracia no Brasil”. Estava acompanhado de outros dois deputados do PL,
Nikolas Ferreira (MG) e Gustavo Geyer (GO). Todos compartilhavam notícias
falsas sobre a enchente gaúcha à distância enquanto prestavam solidariedade
presencial a Paulo Figueiredo, neto do último presidente da ditadura, hoje
investigado no Supremo.
Nenhum ataque, porém, repercutiu tanto quanto
a “denúncia” de que o governo federal havia rejeitado oferta de aviões do
Uruguai. A reportagem da “Folha de S.Paulo” explicava que a recusa havia se
dado em função da inexistência de pistas de pouso para o tipo de aeronave
oferecida, mas, como costuma acontecer nas redes, “viralizou” o título sobre a
recusa. O quiproquó obrigou o governo a soltar nota sobre a recusa, informando
ter aceito helicópteros por terem menor exigência para o pouso.
Esta guerrilha digital sinaliza que o embate
político em torno da tragédia mal começou. Pesquisa Genial/Quaest, cujas
entrevistas foram colhidas entre as duas visitas do presidente Luiz Inacio Lula
da Silva ao Estado, mostra que a região Sul foi a única em que a aprovação do
governo subiu. A segunda notícia positiva mais lembrada pelos entrevistados foi
a ajuda aos gaúchos, o que sugere uma correlação entre os fatos.
Esta aprovação mostra que o foco na tragédia
- e não na disputa política - é o que se quer. Por isso, ao verbalizar crítica
a deputado bolsonarista posando para as redes em jet ski ou ao descaso de seu
antecessor com as vítimas de enchente na Bahia, Lula vai na contramão. Manoel
Fernandes, da empresa de monitoramento digital Bites, diz que foi a primeira
vez em que o governo sai em vantagem nas redes, mas corre o risco de
desperdiçar esta aprovação. Muito mais consequente do que brigar com
bolsonarista seria uma campanha mundial contra a ameaça climática nos moldes
daquela que Lula empreendeu pela fome no primeiro mandato.
As previsões mais otimistas são de que a recuperação do Estado leve quatro anos, tempo suficiente para que bandos de urubus se renovem. Saques em supermercados são um alerta da fome que ameaça os ilhados. As doenças da enchente ainda estão por ser mapeadas. Dificuldades inerentes à reconstrução vão colocar em xeque muitos dos esforços empreendidos. Catástrofes tanto podem fazer com que a solidariedade invada a política quanto permitir que o oportunismo da extrema direita se locuplete. É uma escolha.
Muito informativo, excelente!
ResponderExcluirOs urubus passeiam entre os girassóis,parafraseando Caetano Veloso.
ResponderExcluirExcelente comentário, nos faz refletir sobre o que podemos fazer pra mudar este comportamento.
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