quarta-feira, 29 de maio de 2024

Martin Wolf - Do ‘baby boom’ à falta de bebês

Valor Econômico

Precisamos responder à altura a essas mudanças demográficas profundas que, gostemos ou não, vêm transformando o mundo

As pessoas estão vivendo mais do que nunca. Isso cria tanto oportunidades quanto desafios, como ressaltei recentemente. O adiamento da morte, porém, é apenas uma parte da história demográfica atual. A outra é o declínio dos nascimentos. A combinação de ambas vem criando desafios enormes para o mundo que habitamos.

A ideia de uma “transição demográfica” tem quase um século. As sociedades humanas costumavam ter populações mais ou menos estáveis, nas quais a alta mortalidade era compensada pela alta fertilidade. Na Inglaterra e no País de Gales dos séculos XVIII e XIX, as taxas de mortalidade passaram a ter forte queda. Mas as de fertilidade, não. O resultado foi uma explosão populacional até que, enfim, as taxas de fertilidade também desabaram.

À medida que os benefícios do crescimento econômico e os avanços na medicina e na saúde pública foram se disseminando, a maior parte do mundo seguiu uma transição similar, mas muito mais rápida. Como resultado, o número de pessoas quadruplicou nos últimos 100 anos, de 2 bilhões para 8 bilhões. Com o tempo, porém, a fertilidade seguiu a tendência da mortalidade. O resultado foi a queda repentina das taxas de fertilidade (número de nascimentos por mulher) na maior parte do mundo.

É essencial ajudar os pais, em especial as mulheres, a conciliar carreiras com filhos. Parece claro que muitos não sacrificarão a independência representada pela profissão pelos encargos da maternidade, por maiores que sejam os prazeres que os filhos possam trazer

Segundo um estudo publicado recentemente na “The Lancet”, “a fertilidade está diminuindo globalmente, com taxas abaixo do nível de reposição em mais da metade de todos os países e territórios em 2021”. Para o mundo como um todo, a taxa de fertilidade estava em 2,3, em 2021, pouco acima do nível de reposição e abaixo do índice de 4,7, em 1960. Nos países de alta renda, a taxa de fertilidade estava em apenas 1,6, abaixo do índice de 3, em 1960. Em termos gerais, países pobres ainda têm índices de fertilidade mais altos que os ricos, embora também estejam em queda.

O que explica esse forte declínio nas taxas de fertilidade? Uma parte importante da resposta é a agradável surpresa de que mais crianças sobreviveram do que o previsto (ou desejado). Dessa forma, as pessoas começaram a valer-se de várias formas de controle de natalidade, contrariando as previsões de Thomas Malthus. No entanto, o desejo de ter muitos filhos também diminuiu drasticamente. Isso, de forma fascinante, ocorreu apesar das ideologias de gênero reacionárias. No Irã dos mulás, por exemplo, a taxa de fertilidade desabou de 6,6, em 1980, para 1,7, em 2021.

Uma grande razão para essa mudança foi que, para os pais, os filhos deixaram de ser um ativo produtivo valioso e passaram a ser um bem de consumo custoso. Como argumentou o falecido Gary Becker, as pessoas passaram a desejar ter um número menor filhos, mas de alta qualidade (e com bom ensino), em vez de muitos. Isso se deu, em parte, porque esse era o tipo de trabalhador que era recompensado pela economia. O ensino prolongado, contudo, torna os filhos caros em termos de tempo e dinheiro.

Além disso, a participação feminina na economia teve um aumento drástico no século XX, inclusive em carreiras de alta qualificação. Isso elevou o “custo de oportunidade” de ter filhos, em especial para as mães, mais ligadas à relação parental. Assim, elas passaram a ter filhos em idades mais avançadas ou mesmo a não ter filhos.

Em “A Economia da Fertilidade: Uma Nova Era”, uma excelente pesquisa publicada pelo Gabinete Nacional de Análises Econômicas dos Estados Unidos, em 2022, os autores argumentam que nos países onde a assistência pública aos filhos é mais generosa, as mulheres são incentivadas a combinar carreiras com a maternidade. A ausência de tal ajuda, sinaliza o estudo, ajuda a explicar as taxas de fertilidade excepcionalmente baixas em grande parte do Leste da Ásia e da Europa Meridional, onde o apoio aos pais é limitado. No entanto, isso não está mais tão claro: recentemente, as taxas de fertilidade caíram bem abaixo do nível de reposição mesmo nos Estados de bem-estar nórdicos.

Essa mudança mundial rumo a uma fertilidade muito baixa, com a exceção (até agora) da África Subsaariana, está entre os eventos mais importantes em nosso mundo. Uma implicação é que para 2060 se projeta uma população na África maior que a de todos os países de alta renda de hoje, somada à da China. Outra é que as pirâmides populacionais familiares, com uma base maior, referente às idades mais jovens, estão se invertendo. Na Coreia do Sul, por exemplo, homens de 50 a 54 anos representam 4,3% da população, enquanto aqueles de 0 a 4 anos são apenas 1,5%. Inversões similares vêm ocorrendo em outros países, inclusive, notavelmente, na China e, mais lentamente, na Índia.

A fertilidade extremamente baixa sem dúvida criará grandes desafios. Um deles é como manter sistemas de previdenciários e de saúde à medida que a população em idade ativa diminui drasticamente. Uma resposta será, de fato, vidas laborais muito mais longas. Outra poderia ser a imigração. No entanto, a imigração necessária para estabilizar as populações em sociedades de fertilidade baixa, para não citar as de ultrabaixa, seria enorme e, como tal, certamente impossível em termos políticos e até práticos.

Além dessas questões, há a dúvida se a escassez de jovens inevitavelmente privaria uma economia da assunção de riscos da qual o progresso tem dependido. Por outro lado, uma população em declínio ajudaria, no longo prazo, a reequilibrar as demandas humanas com a capacidade de carga do planeta e com a saúde das outras espécies com as quais o compartilhamos.

Por último, mas não menos importante, quais são as políticas relevantes? A capacidade das sociedades de aumentar as taxas de fertilidade é limitada, em especial porque seria necessário influenciar o comportamento de jovens com bom nível de ensino e bem-sucedidos, o que é muito difícil de fazer. Ter filhos, entretanto, é do interesse das sociedades, caso o próprio futuro delas seja de seu interesse. Ajudar as pessoas a terem os filhos que desejam, de maneiras que se ajustem a seus próprios planos deveria ser um foco das políticas.

É essencial, no mundo moderno, ajudar os pais, em especial as mulheres, a conciliar carreiras com filhos. Parece claro que muitos não sacrificarão a independência representada pela profissão pelos encargos da maternidade, por maiores que sejam os prazeres que os filhos possam trazer. Em termos mais amplos, muitas políticas deveriam ser reconsideradas: em uma sociedade mais velha, por exemplo, haverá mais domicílios e, portanto, uma necessidade de um número muito maior de moradias.

Essas mudanças demográficas são profundas. Gostemos ou não, elas vêm transformando o mundo. E precisamos responder à altura. (Tradução de Sabino Ahumada)

 

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