quinta-feira, 16 de maio de 2024

Paulo Celso Pereira – Todos estão surdos

O Globo

A polarização da sociedade brasileira se refletiu na tragédia do Rio Grande do Sul desde a busca por responsáveis pelos alagamentos

São exatos dois minutos de não diálogo que sintetizam nossa era. Em meio a uma tragédia de proporções bíblicas, um ministro entra em contato com o prefeito de uma cidade atingida e faz questão de filmar a ligação, colocada em viva-voz. Só que o gesto não é unilateral. Do outro lado da linha, o prefeito repete a mesma cena: ao receber a ligação de um ministro de Estado que poderia auxiliá-lo, coloca no viva-voz e filma toda a conversa.

Os dois não se escutam, e a solução da crise humanitária na cidade é apenas o pretexto para a ligação. O papel de ambos naquele teatro é proferir frases e reações lacradoras, gerando conteúdo para animar sua turba de apoiadores — e detratores — nas redes sociais.

O prefeito de Farroupilha é Fabiano Feltrin, empresário e cover de Elvis Presley que se filiou em março ao PL, num evento que contou com a presença de Jair Bolsonaro. O ministro, claro, é Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação do governo. Ontem Lula o escolheu para assumir o Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.

Enquanto publicamente o presidente e o governador Eduardo Leite exibem relação republicana nas ações para superar a tragédia, a máquina de destruição de reputações segue a todo vapor logo abaixo da linha d’água. Ela não encontra barreiras ideológicas nem geográficas, mira políticos, jornalistas, servidores públicos civis e militares, até voluntários que auxiliam quem perdeu tudo.

Pesquisa Quaest divulgada nesta semana retrata outra face desse mesmo fosso em que nos metemos. Nela, 55% dizem que Lula não merece mais uma chance como presidente, mas 47% estão dispostos a votar nele em 2026 — ao menos 2% acham que ele não merece um novo mandato, mas podem votar nele caso a alternativa seja pior. Todos os quatro nomes com apoio de mais de 30% dos eleitores — Lula, Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle e o ministro Fernando Haddad — são rejeitados por metade da população.

A polarização da sociedade brasileira se refletiu na tragédia do Rio Grande do Sul desde a busca por responsáveis pelos alagamentos — provocados, antes de mais nada, porque choveu em 17 dias 40% do esperado para todo o ano — até a patrulha sobre os motivos que levavam apoiadores do campo político oposto a estar mobilizados ajudando as vítimas.

O papel de coordenador da ajuda federal na tragédia obrigará Pimenta a despir-se da farda de general da propaganda para assumir as vestes de diplomata que deverá intermediar interesses do estado e dos muitos municípios — boa parte deles governados por prefeitos de oposição — que participarão da reconstrução. Em vez de atacar quem questiona o governo, o ministro, que durante a gestão Bolsonaro chegou a chamar o atentado sofrido pelo ex-presidente de “fakeada”, terá de baixar as armas.

A guerra por protagonismo ficou evidente na semana passada no drama vivido por Caramelo, o cavalo que se equilibrava sobre um telhado em Canoas. As primeiras imagens do animal surgiram na quarta-feira à tarde. A primeira-dama Janja Lula da Silva amanheceu no dia seguinte alardeando nas redes sociais a mobilização do Exército para o salvamento.

Nas horas que seguiram, as Forças Armadas exibiram ao vivo a mobilização de militares, caminhões e helicópteros para a operação. No entanto, minutos após partirem para a missão, a TV passou a exibir um pequeno grupo de bombeiros se aproximando do cavalo. Eles o colocaram num dos botes e navegaram até terra firme. Na corrida por Caramelo, o Corpo de Bombeiros de São Paulo chegou na frente. Coube ao secretário de Segurança Guilherme Derrite, bolsonarista da Rota que se orgulhava de “tirar vagabundo de circulação”, levantar o troféu nas redes.

Não muito longe de onde o cavalo foi salvo, dois outros cavalos, que ainda não haviam sido batizados por influencers, também tentavam sobreviver, com água até o pescoço, dentro de uma casa inundada. Quando a equipe de resgate chegou ao local, horas depois de Caramelo ser salvo, os dois estavam mortos. Nas redes sociais de Janja e Derrite, nem um story.

 

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