segunda-feira, 6 de maio de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - Universidades e institutos federais – parte 2: implicações da política

(...)os problemas das universidades vão além das questões que as declarações públicas apontam no rastro das reivindicações sindicais das associações de docentes e funcionários (...) Sem desconhecer o efeito devastador de fatores externos, as deficiências resultam em grande parte de vícios da estrutura interna de poder. É necessário que se criem as condições que liberem potencialidades e necessidades que hoje estão reprimidas por essa estrutura (Maria de Azevedo Brandão: “Notas para uma discussão sobre a Universidade”, 1985. Publicado em “Mundo e lugar: a urbanidade do pensamento de Maria Brandão”. Edufba,2021, p.417-420). 

A universidade brasileira não questiona a si própria como estrutura de poder. Há uma sensação de desconforto, há uma situação de calamidade, mas não há uma crise universitária. A universidade vive vegetativamente a crise da sociedade brasileira, porém sem uma crise própria. Tenho dito isso desde que se iniciou a última greve, em abril de 1984. (Maria de Azevedo Brandão: “Rumo a uma nova Universidade”, 1985. Publicado em “Mundo e lugar: a urbanidade do pensamento de Maria Brandão”. Edufba,2021, p.p.421-427).

Retomo o tema do artigo anterior desta coluna (“Universidades e institutos federais, a busca uma razão razoável”) agora desviando o foco da greve nacional dos docentes, que hoje já afeta a grande maioria das instituições federais de ensino do país, na contramão de uma razão razoável. Tendo prevalecido razões corporativas imediatas e o posicionamento político de contestação  ao governo federal, assumido pelo Andes – Sindicato Nacional, o foco deste segundo artigo dirige-se às conexões da ação do movimento docente com alguns aspectos relevantes da conjuntura política. O vetor aqui analisado não é o impacto presumivelmente pequeno do movimento sobre a conjuntura e sim as implicações desta sobre a situação das IFES ora submetidas, em sua maioria, à realidade da paralisação. 

As condições precárias das universidades e institutos federais brasileiros e os impasses orçamentários que a situação envolve resultam, naturalmente, de múltiplos fatores, históricos ou recentes e de natureza interna ou externa ao ambiente das IFES. Dentre os de natureza interna está - sem ser obviamente o único, nem o principal - o corporativismo como atitude política motivadora da ação de suas instâncias sindicais. No momento ele é mais visível no movimento sindical docente, cujos discursos e práticas tendem a singularizar insatisfações reais da categoria numa pauta que, no aspecto salarial, parece sugerir uma situação singular, que distingue cidadãos e cidadãs que ali trabalham dos demais, como se fossem "estranhos" uns aos outros. Consequentemente, é menos provável a atenção às pautas universitárias por parte de cidadãos “comuns”, afetados por mil e uma necessidades e interesses outros.

Essa relativa indiferença social – que pode ser comparada à neutralização atual de uma solidariedade presente em outras conjunturas por uma “antipatia difusa” – pode ser mitigada, a médio prazo, pela mudança, de sentido inclusivo, no perfil social dos integrantes dessas instituições, a começar pelo do seu corpo estudantil, que passa a ser menos distante do perfil do conjunto da população do país. 

Porém, tornar-se menos estranho é faca de dois gumes para quem valoriza manter o status quo e as relações de poder - acadêmico ou político-sindical - vigentes dentro dos muros reais ou imaginários de um campus universitário. Por um lado, a maior convivência (ou o menor estranhamento) entre quem está dentro e quem está fora pode gerar apoio social por recursos públicos para essas instituições. Por outro, estimula questionamentos externos ao modo pouco afeito a prestar contas ao público, pelo qual elas, via de regra, sempre funcionaram. O mesmo processo que faz a universidade pública mais importante na vida de mais pessoas, reduz sua imunidade olímpica a controles sociais. 

A blindagem corporativa ao funcionamento da vida interna das universidades públicas cresceu na contramão dos serviços públicos que ela presta, os quais tendem a aproximá-la da sociedade. De certo modo, esse papel social efetivo da instituição compensa a conduta política autárquica de seus corpos internos. Por outro lado, essa conduta foi alimentada, ao longo do tempo, pela imputação quase automática de excelência que governos gostam de lhes atribuir para afagar (de modo mais retórico do que prático) o seu corporativismo intrínseco. No fim da linha uma certa autoindulgência é estimulada por autoridades administrativas e/ou políticas, às quais deve caber a cobrança efetiva da qualidade dos serviços públicos prestados através da necessária e bem vinda autonomia acadêmica dessas instituições, às quais cabe, por sua vez, instituir e fazer valer uma autoavaliação permanente e pública.

Os afagos retóricos são mesmo algo muito diferente do reconhecimento real do mérito acadêmico, cuja valorização e sustentação é missão precípua das instâncias de ensino superior e cujo cumprimento depende da alocação pública satisfatória de recursos materiais. Essa alocação será politicamente justificada e socialmente aceita na medida em que a sociedade fique segura de que, nas universidades federais, ensinarão, pesquisarão e realizarão atividades de extensão os melhores professores e não os politicamente “corretos”. E segura também de que os gestores dessas mesmas instituições públicas terão suas investiduras nos cargos e suas decisões pautadas por procedimentos democraticamente idôneos e guiadas pelo critério do reconhecimento do mérito, em busca de excelência. Por isso, ao analisar possíveis razões da situação material e funcional difícil que afeta universidades e institutos federais de educação superior foi preciso começar mencionando desafios presentes na sua cozinha. 

Mas há fortes razões externas implicadas na questão, as quais põem em xeque a conduta dos poderes públicos. Estão em diferentes esferas do poder político e, por isso, são logicamente insustentáveis as narrativas que buscam achar Genis genéricas, como a chamada classe política e o Congresso. 

Responsabilidades sérias também cabem ao Executivo. Mais fortemente após a devastação bolsonarista, que não foi pouca nem pequena, subjetiva e objetivamente. Tendo incluído as universidades, suas estruturas e fontes de financiamento entre os principais alvos a atacar e seus membros (servidores técnicos, professores e estudantes) entre os principais inimigos, o núcleo de poder que esteve no governo naquele quatriênio não poderia ter deixado outro legado senão o de devastação.  

Mas mesmo agora, quando o ministério da Educação (ministro e equipe) demonstra ânimo de reconstrução e tenta atuar nessa direção, há problemas de fogo partidário amigo e lhe falta apoio mais decidido do núcleo político do governo. Sem eximir o ministro Camilo Santana de responsabilidade por equívocos e erros de condução política (o precário diálogo com as universidades é um deles), é preciso considerar que ensino superior não é nem pode ser a grande prioridade do ministério, se comparada a sua situação à do ensino básico. O que é preciso, sim, é a política social do governo não deixar a cargo principalmente das próprias universidades a assistência necessária a novos contingentes de estudantes que chegaram até elas através de políticas de cotas e outras, que estão levando a sua democratização social. A política educacional precisa estar melhor integrada à política de assistência social do governo, que precisa fazer melhor a sua parte. Assim haverá mais recursos do ME para melhorar o nível dos serviços educacionais e das condições físicas e materiais de trabalho dos professores. 

Além disso, não se pode deixar de questionar a razoabilidade do anunciado PAC das universidades. Como entender que o governo queira criar novas, antes de equacionar minimamente pendências financeiras, institucionais e obras inacabadas do ciclo expansionista de quinze anos atrás?  Ciclo, é bom frisar, levado adiante também no afã de acelerar a exibição de obras e instituição de novidades nem sempre acompanhadas do devido lastro acadêmico e de sustentabilidade dos investimentos no tempo. Essa permanente "fuga para a frente" é também uma das causas dos problemas orçamentários atuais das universidades. Comparece ainda a implicação do equilíbrio fiscal, que não será tratada aqui (já o foi no citado artigo anterior desta coluna), mas que sem dúvida oferece limitação racionalmente compreensível a que o governo resolva a curto prazo as carências de suas universidades e institutos. 

O que decididamente não ajuda é fazer do Congresso o bode expiatório do problema. A política fiscal é um acordo entre os poderes e não uma camisa de força imposta por um deles para tirar proveito corporativo. Essa explicação simplória tem validade nula, embora possa ser mobilizada como argumento político defensivo para terceirizar responsabilidades. Lembremos que o humor contra "políticos" já levou, em anos recentes, o país a becos estreitos, com difíceis saídas. Não repitamos o erro.

É preciso discernir o que são abusos corporativos do Legislativo (eles existem e não são poucos) para não os confundir com demonização de emendas parlamentares como supostos sorvedouros de recursos que deveriam estar nos campi. Em que medida estariam mesmo? E em que medida deveriam estar? 

Abusos do Legislativo na relação com o governo e na atitude para com a sociedade estão escancarados, mesmo que se tenha tirado de cena seu exemplo mais gritante, o "orçamento secreto". As mazelas persistem no escambo de emendas nem sempre idôneas, seja para obtenção de apoio legislativo a matérias de interesse do governo, seja para fortalecer tráfico de influência da cúpula do Legislativo, especialmente o poder pessoal do presidente da Câmara. Persistem também na subversão, com os mesmos intuitos, de regras de transparência e razoabilidade na liberação de emendas pelo Executivo. 

Em geral estamos longe, portanto, de boas práticas políticas. Mas não se pode desconhecer que além do fim (relativo, é bom dizer sempre) do orçamento secreto, há maior contenção e responsabilidade (e aqui cabe também relativização) na distribuição de cargos no Executivo em troca de apoio parlamentar. Esse procedimento não é censurável em si, sem levar em conta o contexto, mas há muito vem, no Brasil, ultrapassando limites legítimos, dentro dos quais é preciso negociar para haver governabilidade, numa democracia. Sem falar na fragmentação interna de partidos, obra do ânimo fisiológico de parlamentares, estimulada por estratégias de fortalecimento de poder pessoal de protagonistas dos dois Poderes.

É fato, porém, que as emendas parlamentares respondem, em boa parte, a demandas e/ou necessidades de comunidades concretas, assim como de cidadãos e cidadãs que não têm a sorte de possuírem representação autônoma em organizações da sociedade civil. São demandas públicas tão legítimas, do ponto de vista democrático, quanto as dos grupos sociais organizados, ou as de entes públicos estatais autônomos, como universidades e institutos federais. As emendas, via de regra, expressam, do ponto de vista geográfico, demandas locais ou regionais e, do ponto de vista administrativo, demandas setoriais também de difícil consideração pelos órgãos do Poder Executivo nacional, em sua propensão a pensar e agir com uma racionalidade técnica mais abrangente e uma lógica política centralizadora.  

Essas demandas não inicialmente contempladas, a cada ano, nas propostas orçamentárias iniciais (que cabe ao Executivo Federal fazer) encontram respaldo não necessariamente irracional, ou ilegítimo, na representação legislativa, à qual constitucionalmente cabe, aliás, a definição legal das diretrizes orçamentárias e das leis orçamentárias anuais.  É claro que definir diretrizes e leis anuais não significa que o Congresso possa subtrair ao Executivo a prerrogativa de decisões relativas à execução do orçamento. Isso deve ser coibido pelo entendimento político e, no limite (só no limite), pelo arbitramento do Judiciário. Porém, não se pode demonizar as emendas parlamentares como se elas fossem um procedimento espúrio, um "mal em si". Pensar assim é retroceder a uma tradição autocrática forjada nos momentos mais obscuros da república brasileira. O arranjo oligárquico da Primeira República, a ditadura do Estado Novo e o regime autoritário pós 64 são diferentes exemplos, em distintos contextos, de alguma institucionalização, formal ou informal, de um mando tradicionalmente vertical e avesso ao pluralismo. Por vezes, foi mais ditatorial do que presidencial. 

Essa mentalidade quer que o Legislativo volte a ser, na prática, um poder auxiliar, que apenas carimba decisões orçamentárias do Executivo. A justificativa habitual, de que o governo deve cumprir o programa eleito, desconhece que o Legislativo detém legitimidade eleitoral análoga. É uma mentalidade anacrônica, que conduz a estratégias inócuas. A recuperação das prerrogativas do Legislativo é processo irreversível desde a Carta de 88. Só deixará de sê-lo fora dos marcos da democracia, se a Constituição for atropelada por um poder de fato, coisa que Bolsonaro tentou fazer e não conseguiu, porque as instituições do estado e da sociedade civil reagiram.

Fariam bem os sindicatos da categoria e demais atores sociais, lideranças políticas e personalidades internas e externas, aliados à causa das instituições federais de ensino superior se, para defendê-las, passassem a enxergar no Congresso, não um obstáculo hostil a derrotar, mas um interlocutor legítimo. 

*Cientista político e professor da UFBa.

Um comentário:

  1. Muito bom! Destaco uma ideia:
    "Tendo incluído as universidades, suas estruturas e fontes de financiamento entre os principais alvos a atacar e seus membros (servidores técnicos, professores e estudantes) entre os principais inimigos, o núcleo de poder que esteve no governo [bolsonarista] naquele quatriênio não poderia ter deixado outro legado senão o de devastação."
    Bolsonaro escolheu a dedo os piores ministros pra comandar a Educação, com destaque para o criminoso Abraham Weintraub, o ministro SEM EDUCAÇÃO, já julgado culpado pelas acusações MENTIROSAS contra as Universidades Públicas. Teve ainda o pastor que trocava bíblias por barras de ouro, o ex-militar que falsificava o seu currículo... Só bandido de colarinho...

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