terça-feira, 14 de maio de 2024

Pedro Cafardo - A indústria fez gols contra por três décadas

Valor Econômico

Propostas do neoliberalismo venceram a narrativa dos anos 1990 e os reflexos dessa vitória ainda hoje estão presentes em todas as formas de relações sociais

Peço desculpas para voltar ao tema da desindustrialização num momento em que o país, corretamente, só tem olhos para atenuar a tragédia socioambiental gaúcha. Mas há muitos trabalhos acadêmicos que merecem ser divulgados sobre a “tragédia industrial” e um deles, diferenciado, é do pesquisador PhD Haroldo da Silva, da PUC-SP, que buscou uma compreensão sociológica do problema, além da econômica. Ele partiu de uma pergunta que o intrigava: a despeito do eficiente trabalho da Confederação Nacional da Indústria (CNI) na área legislativa em defesa do setor industrial, por que o processo de desindustrialização foi tão intenso no Brasil nas últimas três décadas?

Haroldo dedicou quatro anos à investigação dessa questão e, no fim de 2023, apresentou sua tese de doutorado (“A Ação Política dos Industriais no Congresso”). Em resumo, concluiu que a Agenda Legislativa da Indústria (Ali), da CNI, cujas propostas tiveram alto índice de sucesso no Congresso, acabou atuando contra os próprios interesses da indústria.

O trabalho abrangeu o período de 1996 a 2021 e contemplou todos os projetos listados pela Ali em 26 anos. Nesse período, a CNI-Ali foi nacionalmente reconhecida como representante legítima do grupo de interesse dos industriais, como formuladora do plano estratégico de melhoria da competitividade sistêmica do setor, para a redução do custo Brasil.

Em termos de legislação, a atuação legítima de “advocacy” da CNI-Ali foi um sucesso. De 1996 a 2021, foram incluídos 3.165 projetos na pauta de interesse direto ou indireto do sistema industrial. A mão do Estado regulando ou desregulando a economia foi o tema mais destacado, com 35% das propostas. Em segundo lugar vieram as propostas sobre questões trabalhistas (23%), e em terceiro, as que trataram do sistema tributário (13%).

Segundo Haroldo, a CNI teve uma linha de atuação flexível no campo da política. A opção de não ter uma bancada da indústria (ao contrário do agronegócio), aparentemente uma debilidade, permitiu dialogar com diferentes frentes, sem partidarismo, o que garantiu o sucesso na defesa de seus interesses. Houve também elevada convergência com o pensamento industrial de todos os governos do período. A mais alta convergência foi com Bolsonaro, que teve 86% dos projetos enviados ao Congresso apoiados pela CNI-Ali. Mas o governo Dilma obteve 83%, Lula 1 e 2, 77%, Temer, 74% e FHC, 71%.

Volta, então a pergunta do início: com tanto sucesso na aprovação de medidas apoiadas pela indústria, por que a desindustrialização avançou tanto nesse período?

A resposta do pesquisador pode ser resumida em uma palavra: neoliberalismo. Sinteticamente, o neoliberalismo defende a supremacia do livre mercado frente a qualquer intervenção (principalmente econômica) por parte do Estado. Sua disseminação forjou o pensamento dominante na política econômica mundial. Essa agenda neoliberal, advinda do Consenso de Washington (1989), teria sido elevada ao paroxismo no Brasil, a ponto de os próprios industriais, ideologicamente cooptados, jogarem contra seus próprios interesses - contra o investimento produtivo e a favor da abertura comercial ampla e do rentismo, por exemplo.

Para explicar essa incoerência dos industriais, o autor da tese recorre ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002): “Os dominantes só atingem essa condição tendo em vista a cooperação, ainda que inconsciente, dos dominados”. E os industriais brasileiros sucumbiram à dominação do setor financeiro. Muitos defenderam e defendem os princípios neoliberais para ocupar os mesmos espaços de vários de seus pares, sob pena de, ao questionar o “consenso”, perder seu capital, não econômico, mas simbólico. Debater o neoliberalismo, escreve Haroldo, tem sido considerado algo secundário pelos economistas dominantes, os ligados a bancos, que têm acesso privilegiado aos meios de comunicação e formam a opinião pública. Na prática, agem como se contrariar os princípios neoliberais fosse como negar a lei da gravidade ou defender o terraplanismo.

O acolhimento das ideias neoliberais pelos industriais nas últimas três décadas contraria frontalmente o modelo defendido por Roberto Simonsen (1889-1948), o mais importante pensador brasileiro do setor industrial, que presidiu a Fiesp e a CNI. Simonsen defendia um esforço de industrialização sob liderança do Estado, a partir da planificação de uma nova estruturação econômica. A proposta é bastante atual, mas distante da corrente neoliberal que, em grande medida, conduziu ou influenciou os que conduziram a economia do país nas últimas três décadas.

As propostas do neoliberalismo venceram a narrativa dos anos 1990 e os reflexos dessa vitória ainda hoje estão presentes em todas as formas de relações sociais. Elas estão travestidas, segundo Haroldo, de “cantilenas” como “reformas, reformas, infinitas reformas”, “austeridade fiscal”, “redução do tamanho do Estado e privatizações”, “flexibilização de leis trabalhistas”, “abertura da economia” e “juros elevados”.

Como receita dominante, essas propostas também encontraram amparo no Brasil e seduziram, inclusive, parcela dos intelectuais da academia e dos empresários industriais. Estes não conseguiram compreender até agora, escreve Haroldo, que a opção pela agenda neoliberal, irrestrita e ideologicamente cega, seja elemento central no processo de desindustrialização. Relatos, fatos e dados evidenciam que aderir à agenda neoliberal, sem ressalvas, não foi bom para a indústria brasileira.

Enquanto isso, nos países desenvolvidos há uma evidente onda de retomada do apoio à indústria, com a pegada forte da sustentabilidade. O ponto em comum é o Estado indutor em diferentes frentes de atuação, pelo prazo necessário e suficiente para a transformação competitiva. Um levantamento do Transnational Institute, da Holanda, verificou que entre 2000 e 2017, 884 serviços públicos foram reestatizados na Europa.

 

2 comentários:

  1. Perfeito!

    Um exemplo que confirma a tese apresentada pelo autor está no livro " Como a China escapou da terapia de choque ", de Isabella Weber.

    ResponderExcluir
  2. Realmente perfeito! Magnífico, até!

    ResponderExcluir