quarta-feira, 8 de maio de 2024

Vinicius Torres Freire - Os retirantes das enchentes

Folha de S. Paulo

Gaúchos ora fogem para o litoral, mas país prepara êxodos de terras devastadas

Talvez permaneça na lembrança a figura do retirante das secas do Nordeste. Na imagem mais comum ou mesmo na caricatura, eram pessoas que fugiam do desastre social carregando suas poucas coisas em sacos nas costas.

Por vezes, se tornavam pedintes em cidades maiores, quando não eram confinados em campos de concentração, ou pegavam um "pau de arara" a caminho do sul do país.

É como aparecem na tela de realismo quase socialista que Candido Portinari (1903-1962) pintou em 1944. Um velho com um cajado, um casal, uma mulher mais jovem e cinco crianças, todos esquálidos, parecem posar, bestificados, de pé sobre um chão esturricado, sob um céu de urubus.

Eram personagens dos romances da seca, no final do século 19 ou do começo do 20, e presença soturna e frequente na literatura que vai até os 1960.

Fugiam do abandono. Muita vez sem terra, sem empréstimos ou técnicas para melhorar suas roças, sem remédios, sem escola, viviam longe de tudo, sem estradas, sem uma obrazinha que lhes desse uma cuia d’água para beber.

No drama do Rio Grande do Sul, ouvimos relatos de pessoas que já pensam em desistir da vida em cidades do centro do estado, por dois anos seguidos destruídas pelas enchentes. Parece um exagero pensar nos retirantes das cheias —por ora.

Vive-se melhor no Sul; o país é menos pobre; até plantamos trigo no Nordeste. Mas, para quem perdeu tudo e parentes e amigos, a perspectiva pode ser outra, mesmo que seja difícil deixar família e trabalho, sua terra e sua paisagem.

Depois de sete anos de chuva, podem vir sete de seca, para lembrar a história bíblica de José e o Faraó, que, no entanto, está nos jornais.

O Rio Grande do Sul tem vivido entre tempos tórridos e enxurradas. Os gaúchos fogem para as casas de parentes e amigos que não estão submersas; os que podem escapam para o litoral. Na maioria dos casos, será apenas uma temporada longe do inferno.

Quando haverá um êxodo de verdade? Pode não ser no Sul. Espalhamos desastre pelo país. Queimamos o abrigo da maior fonte d’água, a Amazônia, assoreamos os rios no Centro-Oeste por causa da ocupação desordenada do cerrado, fazemos o São Francisco minguar, cidades do tamanho de São Paulo e Fortaleza ficaram à beira de não ter o que beber na década passada.

Ainda não temos medida do prejuízo dos gaúchos, casas, estradas, pontes, terras e negócios que se foram. Está cada vez mais evidente, na percepção do risco da vida e do dinheiro, que o custo aumenta, porém.

Para lembrar algo que agora soa comezinho e desumano, é cada vez mais caro fazer seguro, quando há alguém disposto a bancar o perigo de sinistro, dada a frequência dos desastres.

Viver e trabalhar fica mais custoso. Uma reconstrução teria de ocorrer em outros termos. Evitar a perda irremediável de outras terras deveria ser um plano prioritário. Mas, agora mesmo, o Congresso trabalha para acelerar a destruição.

Profecia doida? Nos anos 1930, um desastre ambiental provocou miséria e migração em massa nos Estados Unidos. A devastação do ambiente das Grandes Planícies (o miolo do território americano) provocou a ruína do solo, seca e nuvens enormes de poeira: o "Dust Bowl". Aconteceu em um país que já era então rico, apesar de passar pela Grande Depressão, e menos ignorante do que nós.

"As Vinhas da Ira" (1939), o romance de John Steinbeck (1902-1968), é uma das memórias daquela desgraça, causada por uma ocupação econômica selvagem, uma história tristíssima de retirantes da terra reduzida ao pó e tomada pelos bancos credores de fazendeiros pobres.

Partem para a Califórnia dourada, que se revela também uma ilusão, Califórnia que, por falar nisso, está cada vez mais seca e queimada.

 

Um comentário:

  1. A Lesma Lerda: fábula sobre as atitudes a respeito das recorrentes enchentes brasileiras
    Se nos incumbisse escrever uma fábula a respeito das recorrentes e desastrosas enchentes de nosso país, ela teria esse nome (“A Lesma Lerda”), que, apesar de ser nomeada com reconhecido mau gosto, teria a intenção de provocar nossos leitores a pensar ao menos um pouco fora da pútrida caixa d’água em que, por incúria governamental, centenas de cidades brasileiras têm se transformado a cada início de ano. Mas, como não estamos para brincadeiras, deixemos a fábula de lado e tratemos de pensar um pouco fora da caixa ... d’água.
    Há cerca de vinte anos atrás, uma entidade estatal de planejamento chamada EMPLASA (ora recém-extinta) efetuou um estudo do tipo “fora da caixa”. Essa maneira de pensar é rara no Brasil, tendo sido aplicada apenas por uma notável “escola” de pensadores estratégicos-situacionais do Recife, a PROCENGE. De fato, esse grupo (formado por antigos dirigentes da UNE, União Nacional dos Estudantes), executou pelo menos duas centenas de planos que se baseavam na visão matricial dos complexos dilemas urbanos
    A EMPLASA, na cidade de SP, na virada do milênio, fez o cruzamento de informações de diversas “caixas” de distintos setores de governo, os quais são normalmente mutuamente excludentes na troca de informações. Essa empresa estatal mapeou mil pontos de enchente recorrentes da cidade. Depois, fez o mesmo com os pontos de depósito irregular de lixo. E, por fim, localizou os pontos de ocorrência de leptospirose. E teve a coragem de sobrepor esses três mapas.
    As coincidências reveladas por essa atitude singela, mas muito inteligente, foram inusitadas e suscitaram a busca de outras coincidências, como por exemplo a localização de habitações urbanas precárias. O lixo irregularmente depositado o era quase sempre nas favelas, que, por sua vez, eram localizadas à beira de cursos d’água. Quando dos meses de chuva, esse lixo era arrastado pelas águas e entupia os esgotos e córregos, tornando mais lento o fluir das águas e induzindo seu espraiamento para as baixadas. Esse mesmo lixo, por sua vez, atraía roedores e moscas, os quais são vetores de várias doenças, entre as quais a leptospirose. Os ratos urinam sobre o lixo e isso potencializa a contaminação urbana pelos patógenos. Um estudo recente sobre “moscas-verdes”, tão comuns nos lixões, feito pela UFRJ em conjunto com a Universidade Tecnológica de Nanyang, de Cingapura, e publicado por conceituada revista internacional de genética, mostrou que cerca de 500 agentes patógenos são passíveis de ser por elas propagados (inclusive o antrax e a peste bubônica, que se acreditava ter como vetor apenas os ratos).
    Não seria agora – e mais uma vez – a chance de mudar a forma de planificar nossas cidades? Que tal ensinar as crianças de hoje para que aprendam a não depositar lixo fora do lixo? Que tal prevenir as enchentes construindo mais e mais reservatórios a montante? Que tal combater as moscas e os ratos, como já fizemos há cem anos, quando das epidemias? Que tal ter órgãos de planificação governamentais com a qualidade que teve a EMPLASA, mas com credibilidade capaz de fazer os governos levarem à prática os conhecimentos adquiridos? Que tal nos eximirmos dos comentários e das atitudes de sempre? Que tal passar a pensar matricialmente - isto é, fora da caixa - não só nesse assunto, mas em todo problema complexo de engenharia e planejamento urbano?
    Físico Laurindo Junqueira, São Paulo, 8 de maio de 2024

    ResponderExcluir