Folha de S. Paulo
É preciso criar e escancarar indicadores de
como o desastre climático afeta o cotidiano
É difícil associar imediatamente
acontecimentos específicos, como a
desgraça que se desenrola no Rio Grande do Sul, com a evidente degradação
do clima no planeta.
Se por mais não fosse, em muitos casos o
morticínio ou a destruição dependem também da falta de planejamento urbano ou
econômico e à escancarada e desavergonhada exclusão social.
De qualquer modo, a recorrência dos desastres
já demonstrou que aquela história de populações que vivem em "áreas de
risco" é mais do que velha e acanhada.
Não há mais "áreas de risco", circunscritas, embora existam buracos do inferno sobre a terra ou sobre a Terra. É claro que os pobres sofrerão e morrerão primeiro, pois vivem naquelas zonas centrais de intersecção de riscos, socioeconômicos e ambientais.
O risco ou a desgraça estão cada vez mais
espalhados ou se espalham também em ondas, mais ou menos difusas. Se essa
conversa parece abstrata, basta pensar no óbvio efeito de temperatura e chuvas
sobre plantações, rebanhos, produção de água potável ou no nível de
reservatórios de usinas hidrelétricas.
Em 2015, São Paulo, a maior cidade do país,
esteve à beira de um colapso total no abastecimento d’água, por questão de
dias. Além de tudo simbólico, em 2021, nuvens de poeira escureceram os céus do
estado.
Os efeitos crescentes das variações de
temperatura e chuvas sobre a inflação, por
exemplo, mal começam a ser estudados. É fácil perceber como o clima pode ter
impacto no preço de comida e eletricidade, no desempenho geral da economia e,
pois, no bem (mal) estar social.
As secas terríveis de 2014 e 2015 no Brasil
tiveram alguma parte na Grande Recessão de 2014-2016. O impacto não é apenas
pontual, de resto. Regiões cultiváveis deixam de sê-lo ou perdem as
características que permitiam o cultivo rentável de certos produtos. Vai
piorar.
O assunto é muito difícil, faltam dados; a
produção de muita commodity agrícola se espalha pelo mundo, sujeita cada uma a
variações não concomitantes do tempo, de resto regionalizadas.
As primeiras pesquisas apenas arranham
algumas evidências e associações da ruína climática com a economia —mas elas já
existem. Vide um estudo que saiu no mês passado na revista científica Nature
("Global warming and heat extremes to enhance inflationary
pressures", de Maximiliam Kotz, do Instituto Potsdam para a Pesquisa do
Impacto do Clima, e colegas do Banco Central Europeu).
E daí? Precisamos saber mais também no debate
público, embora a demagogia extremista tenha reduzido a confiança no
conhecimento científico.
Precisamos saber mais do que os números de
queimadas, desmatamentos e outras devastações dos biomas, mais do que
"populações em área de risco", mais do que estatísticas de mortes
"em desabamentos" em tempestades.
O poder público precisa chamar cientistas
para produzir indicadores sintéticos da destruição e seus efeitos, ao menos de
indicadores de riscos imediatos causados pela degradação. Ou de medidas mais
frequentes da associação de morticínios e perdas econômicas a devastações do
ambiente.
Em parte, e, em baixa frequência, tais dados
já existem. Precisamos estudar maneiras de dar sentido urgente a tais números.
Não é mais possível dizer que secas, calores
ou até frios prejudicaram tal safra ou que há risco de "Bandeira
Vermelha" no preço da energia porque a água não correu para as usinas, de
modo dão ligeiro como comentávamos se iria fazer sol ou chover no final de
semana.
Precisaríamos de algo como um IBGE do
desastre ambiental e climático, para dar mais alertas e escancarar as feridas,
até porque quem fere continua no mais das vezes impune.
Sei.
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