Folha de S. Paulo
Pelo olhar patrulheiro, Ludmilla, incentivou
e difundiu racismo religioso
Quando acusada de um delito na antiguidade
clássica, a pessoa tinha o direito de compor e fazer um discurso de autodefesa
que seria apresentado diante de uma assembleia e perante seus acusadores.
Esse discurso, a apologia, era reconhecido
como o exercício do sagrado direito de se defender diante de acusações
públicas. Os gregos, que deram origem à prática, davam grande valor à honra e à
integridade do indivíduo, não abriam mão das normas que garantiam o direito de
autodefesa e davam ao acusado a oportunidade de se valer de todos os meios de
persuasão.
No período medieval, a combinação entre religião e política mudou o sentido da apologia, que já não dava ao orador uma oportunidade de absolvição. A maioria dos acusados já havia sido condenada antes de sua defesa, de forma que a apologia era basicamente uma chance de aceitar o próprio destino, acolher a morte, mostrar por que se merecia ao menos o perdão de Deus. A persuasão por argumentos não tinha qualquer papel nesse processo, pois de nada valem a razão contra crença e a lógica contra o dogma.
Mudanças sociais importantes nas sociedades
modernas e contemporâneas mudaram de forma radical o papel da defesa diante de
acusações públicas. A democracia trouxe de volta a ideia de deliberação pública
e o direito de ser ouvido e considerado, o pensamento liberal moldou a ideia de
uma sociedade de direitos e o devido processo legal. A apologia já não precisa
ser um discurso de sobrevivência, como na Antiguidade, ou de desespero, como na
Idade Média, mas principalmente uma defesa da própria imagem e reputação diante
da opinião pública.
Hoje, com a cultura do cancelamento, a
impressão que se tem é a de uma brutal regressão às formas religiosas,
dogmáticas e irracionais que haviam sido abandonadas com o advento da democracia e
do Estado de Direito. Quando alguém é acusado publicamente, a sentença já está
lavrada. A diferença legal entre acusado e culpado desapareceu, o devido
processo é inaceitável.
Se estudantes de uma universidade acusam um
professor de assédio moral, como aconteceu na UFBA na semana passada, ele é
automaticamente um assediador e deve ser tratado como tal, arcando com todas as
consequências da sua condição: impedido de dar aula, insultado, quando não
imediatamente afastado e demitido. Não importa se a acusação tiver sido objeto
de um processo administrativo que não lhe deu provimento. Em um mundo de
direitos, uma acusação pode ser falsa, precipitada, sem fundamento, maliciosa
ou desproporcional. Na cultura do cancelamento, não há hipótese de os
acusadores estarem errados.
Em um videoclipe de Ludmilla que
é quase um manifesto de correção política, havia um plano, com duração de uma
fração de segundo, em que se via uma pichação típica das disputas no mercado
religioso das periferias. "Só Jesus expulsa
o Tranca
Rua das pessoas", dizia. O plano anterior mostrava um
cartaz de defesa do feminismo e denúncia do feminicídio. Mas o olhar
patrulheiro conseguiu detectar e isolar apenas este plano, que lhe pareceu
justificar a pesada acusação de que o clipe, logo Ludmilla,
"incentivou", "reforçou" e "difundiu" racismo
religioso e "instigou" a violência contra templos de
religiões de matrizes africanas.
Em um universo de direitos, toda acusação
pode ser desafiada a apresentar provas e argumentos e deve ser testada em sua
solidez com base em razões e fatos. Na cultura do cancelamento, bastam as
convicções dogmatizadas pelo grupo.
Ludmilla se tornou responsável pela violência
a que estão sujeitas as religiões de matrizes africanas no Brasil, não importa
o resto do vídeo, o manifesto que está na sua abertura, quem é a cantora ou
qualquer discurso de autodefesa que ela apresente. Como na apologia medieval,
nenhuma explicação será considerada, a sentença já foi expedida, a única coisa
que lhe caberia é implorar perdão, apagar o vídeo e prometer não pecar mais.
Ludmilla não pode negar ter errado, alegar
outra intenção, reivindicar outra interpretação, declarar que foi sem querer ou
mostrar por sua história que é uma boa pessoa. Só a mortificação é aceitável:
pequei e me arrependo, mereço todas as punições, nunca mais faço de novo.
Ai de quem se recusar a aceitar que todo
acusado é culpado; pobre do incauto que repudiar a bruta covardia dos coletivos
de linchadores e justiceiros. Quem está contra a sagrada fúria da multidão que
ataca o assediador e a racista, o que mais poderia ser além de cúmplice das
injustiças do mundo?
A cultura do cancelamento nos embruteceu como
sociedade.
Verdade,não sabia do ocorrido,vou procurar o vídeo.
ResponderExcluirNão encontrei.
ResponderExcluir