quarta-feira, 29 de maio de 2024

Wilson Gomes - Fé é cega, faca amolada

Folha de S. Paulo

Tudo é tragado pelo redemoinho da partidarização e da radicalização 

O debate público brasileiro anda tão encharcado de gasolina que o mínimo atrito de ideias, coisa normalíssima na esfera pública democrática, gera um incêndio de grandes proporções.

A inevitável busca por cliques das versões online dos jornais, em perene crise financeira, e o paywall que nos títulos das reportagens entrega razões para a fúria, mas não os fatos ou argumentos que se situam depois deles; os grandes reservatórios de raiva e ressentimento político que se acumularam desde 2013 neste país e levaram grupos a afiar facas e preparar porretes para quando fosse a sua vez de bater; a transformação digital da discussão política, que converteu interlocutores que acreditavam em divergir com civilidade em militantes e militantes em guerreiros; a extrema tribalização da vida pública, com o aumento dos incentivos que cada grupo oferece para a radicalização e a intolerância —tudo isso contribuiu decisivamente para esse novo modo de debater política à base da "fé cega, faca amolada".

Fala-se muito em polarização e muitos entendem que seja um problema de binarismo, acreditando que uma terceira via quebraria esse feitiço. É um engano.

Polarização significa apenas que o centro foi esvaziado, todos foram se apertando nas posições mais extremas, não importa se são duas, três ou cinco. O problema, insisto, consiste na radicalização associada ao abandono das posições moderadas, que se esforçam em criar pontes, negociar pontos de vistas e ouvir o outro lado.

O país foi crescentemente tribalizado e radicalizado, e de forma tão intensa que mesmo as vozes mais sensatas não parecem se dar conta de que findam por soprar as brasas que inflamam os ânimos e impedem entender o que o outro quer dizer.

Alguns exemplos me parecem ilustrar essa premissa, mas hoje ficarei apenas em um deles, prometendo voltar ao tema.

Há algumas semanas, uma coluna de Joel Pinheiro da Fonseca nesta Folha reconhecia que a direita antibolsonarista –"minoria valorosa, imprescindível no debate público qualificado, mas incapaz de conquistar as multidões"– precisaria criar espaço para que "bolsonaristas moderados" ascendessem. E estabelecia os requisitos da moderação exigida: respeitar as regras da democracia, aceitar os resultados das urnas e repudiar o uso da violência.

O mundo veio abaixo. Alguns responderam com argumentos, que é o que se espera do debate público, sustentando que, como "bolsonarismo" é simplesmente a denominação que por aqui damos à extrema direita, "bolsonarista moderado" seria algo como "radical moderado" ou "extremista de centro" ou "claro enigma" –uma impossibilidade lógica, um oximoro.

Afinal, extremistas de direita, por definição, têm tendências autocráticas.

Teoricamente sim. Mas o bolsonarismo é também um antipetismo, um reacionarismo e uma posição antiestablishment, distribuído ao longo de um espectro que vai das formas mais radicais e fanatizadas às mais mitigadas e hesitantes, como todo movimento político. Seria o bolsonarismo a única posição homogênea e unidimensional na política? Um ceticismo saudável nos levaria a descrer disso.

Isso posto, não deveria a direita republicana (isso não é oximoro) considerar a possibilidade de herdar parte do patrimônio eleitoral do bolsonarismo depois de decantar e expurgar ao menos suas pulsões fascistoides e a sua inclinação a aceitar a brutalidade como instrumento da política?

Argumentos desse tipo, contudo, foram raros. Em geral, o debate foi contaminado por inferência acerca das intenções do colunista, portanto, da Folha, logo, da mídia corporativa, por conseguinte, do neoliberalismo.

Claro, para guerreiros, o que existem são trincheiras e combatentes. E logo se decidiu que claramente o propósito da fantasiosa invenção de um bolsonarismo moderado era "normalizar" e ungir o governador de São Paulo como herdeiro do legado eleitoral do bolsonarismo. O que muitos consideram inaceitável, considerando particularmente o ranço antipetista da sua retórica, a adoção da brutalidade como política de segurança pública e as suas sucessivas demonstrações de canina fidelidade a Bolsonaro.

Suspeitar de uma agenda oculta do colunista é bastante para condenar, a priori, o seu argumento.

O fato, meus amigos, é que os campos magnéticos do bolsonarismo e do petismo continuam atraindo e distorcendo com tal força as discussões políticas que não se permite sequer que se façam projeções sobre o mundo pós-Bolsonaro ou pós-Lula.

Tudo é tragado pelo redemoinho da partidarização e da radicalização, no qual os argumentos morrem e a razão dá lugar à mera vontade.

 

Um comentário:

  1. Sem dizer que a extrema-direita é mais agressiva e mentirosa que a esquerda.

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