sábado, 15 de junho de 2024

Bolívar Lamounier - Um gigante que poucos veem

O Estado de S. Paulo

Exportando 40 tipos de minérios e possuindo uma agricultura diversificada, não conhecer a África do Sul é uma clara indicação de nossa obtusidade

No dia 29 do mês passado, a África do Sul realizou suas eleições gerais. Tive o privilégio de visitar o país cinco vezes, a primeira na tormentosa década de 1990. Logo tomei um táxi e perguntei ao motorista: “Como o senhor está vendo o quadro político?”. Ele me respondeu na lata: “É fazer a eleição ou encarar a guerra civil, que implicará a destruição da melhor infraestrutura deste continente”.

Ao contrário das favelas brasileiras, situadas em morros, o Soweto é plano. É uma infinidade de pequenos casebres quadrados ou retangulares, todos cobertos com folha de zinco. Caminhei uns 300 metros e puxei conversa com uma família que vendia frutas numa caminhonete. Comi um abacaxi, tirei fotos com eles, almocei num modestíssimo botequim e segui em frente.

Praticamente nada sabendo a respeito do país, ouvira dizer que é um dos países mais lindos e desenvolvidos do continente. Exportando 40 tipos de minérios, inclusive urânio e titânio, possuindo uma agricultura diversificada, ótimas uvas, uma culinária esplêndida e, não menos importante, uma classe política e uma intelectualidade que facilmente ombreiam com as nossas. Não conhecê-lo é uma clara indicação de nossa obtusidade.

O país se formou no século 16, no ciclo da busca do caminho marítimo para as Índias – a busca das especiarias, na qual os portugueses também tiveram papel relevante –, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabeleceu um pequeno entreposto na região onde hoje se situa a belíssima Cape Town (Cidade do Cabo). Os ocupantes eram poucos e tinham estritas instruções de apenas comerciar com os negros nativos, abstendo-se de qualquer convívio com eles. Com o tempo, os afrikaners (antes conhecidos como boers) multiplicaram-se, ignoraram instruções de seus empregadores e, pressionados pelos ingleses, migraram para o norte e para o leste.

Em meados do século 18, ao tomar conhecimento da riqueza mineral do país, os ingleses seguiram a mesma trilha. Incapazes de bater militarmente os culturalmente inferiores afrikaners, optaram pelo enriquecimento em vez do domínio político e da agricultura. Escusado frisar que daquele momento até o fim do século 20 o país se viu envolto em inumeráveis conflitos, com dezenas de milhares de mortos, e que atualmente contam dez idiomas oficiais mesmo entre os ingleses e os afrikaners, tendo estes adotado o afrikaans, uma derivação do holandês, também elevado à condição de língua oficial.

Medidas graduais de segregação (por exemplo, o sexo e posteriormente o casamento inter-racial) foram sendo impostas às tribos negras: um racismo de todos contra todos. Cada vez mais violento, esse racismo tornou-se lei em todas as áreas da vida em sociedade, no entretenimento, na educação, nos esportes, na religião, na política (com o voto negado aos negros) desde 1924, concomitantemente com o banimento de toda a oposição. Ao findar o século 20, menos de 10% dos brancos já haviam se apropriado de 90% das terras agricultáveis, cabendo o resto à maioria negra: 70 milhões de indivíduos. Mas a minoria branca teve de enfrentar a resistência de todo um arco-íris de grupos organizados; a luta inicialmente pacífica, inspirada em Mahatma Gandhi, na qual predominava o partido Congresso Nacional Africano (ANC), fundado em 1912 e com a liderança inconteste de Nelson Mandela. Recolhido em 1962 ao presídio da Ilha Robben, 6 milhas ao sul do continente, Mandela foi parcialmente liberado após 27 anos e em definitivo em 1994, quando a “revolução negociada” ganhou momentum.

Não que tenha grande importância, mas cabe mencionar que, em 1948, no Brasil, um brando projeto do senador Afonso Arinos caracterizou o racismo como “contravenção penal”. No mesmo ano, na África do Sul, por uma diferença de oito votos, o primeiro-ministro Daniel Malan promulgou uma lei generalizada de segregação e tomou as providências repressivas correspondentes à escala de tal violência. De 1990 a 1994, configurou-se a “revolução negociada” entre o governo e todas as entidades de oposição. Negociada e pacífica, anunciada num discurso de 45 minutos pelo primeiro-ministro Frederik de Klerk, estendeu o direito de voto a toda a população adulta, no quadro de uma democracia racial, merecendo ser avaliada por larga margem como a mais espetacular das transições de regime do século 20.

A poucos dias da eleição, um problema grave persistia. Mandela fazia questão da participação do partido Inkatha, sediado na costa sul do Oceano Índico, base do povo zulu, e liderado pelo chefe tribal Mangosuthu Buthelezi, inimigo figadal de Mandela. Após agonizantes tentativas, Buthelezi concordou, mas o nome do Inkatha não constava da lista. Um juiz autorizou a realização do pleito, com a condição de que a sigla Inkatha aparecesse em todos os róis de votação. Foi o que se fez: em três dias e três noites, etiquetas do Inkatha afixadas às 81 milhões de cédulas já impressas.

 

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