sábado, 1 de junho de 2024

Carlos Alberto Longo - Reinvenção da política no Brasil

O Estado de S. Paulo

Uma democracia representativa com trinta e tantos partidos torna-se prisioneira de manobras de facções, escorrega para o assembleísmo e cai no populismo

A globalização está na raiz da crise que abala não só o comércio e as finanças mundiais, mas também a legitimidade da democracia representativa praticada no Ocidente. Os problemas e o diagnóstico da crise política no Brasil são idênticos aos de quando se olhava para as eleições de 2018. A polarização entre os partidos de esquerda e de direita não arrefeceu, ao contrário, promete se intensificar nos próximos anos. A crise dos partidos, do sistema político e da democracia representativa não é um problema só nacional.

Uma agenda para contornar a nossa crise e reinventar a política já foi exposta com clareza pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas com uma importante restrição: desde que se admita que, no futuro, deverá prevalecer um regime liberal “contemporâneo”, ou seja, formas democráticas menos “verticalizadas”. Isso porque a disseminação de novas tecnologias de informação e comunicação potencializou a voz e a influência dos cidadãos.

Ocorre que, enquanto se esboça no Ocidente a crise da legitimidade democrática, em regimes políticos autoritários no Leste Asiático viceja prosperidade econômica e realizações sociais. Se o sistema de valores desenvolvido no Ocidente não consegue persuadir o cidadão a fazer sacrifícios voltados para o futuro, ele simplesmente não é sustentável. Uma solução possível terá que resultar da participação mais intensa na política de uma elite esclarecida, com os olhos voltados para o que há de útil na mecânica institucional da chamada democracia “efetiva”, hoje aplicada à China.

Contudo, a nossa crise não é apenas política, ela é uma crise de modelo. Uma democracia representativa com trinta e tantos partidos torna-se prisioneira de manobras de facções, escorrega para o assembleísmo e cai no populismo. No Brasil, no modelo do sistema partidário e de federalismo o presidente é eleito pela maioria absoluta dos eleitores, mas até hoje nunca o partido de nenhum presidente ultrapassou os 20% de congressistas. A multiplicação de partidos dissemina os interesses particulares, sejam eles materiais, ideológicos ou identitários.

A nação no fundo são as pessoas, entretanto, quem as representa são as duas Casas do Congresso. No fundamental, hoje, o governo perdeu o controle da agenda programática e, em consequência, o Congresso

aumentou seu poder em termos fisiológicos. A ascensão recente do Judiciário significa uma reação à fragilização do Executivo diante de um Congresso hostil, indócil e forte. Para contornar essa adversidade faz-se necessário evoluir em direção ao regime parlamentar, cuja migração é essencial para reconstituir o sistema partidário.

O regime de gabinete responsabiliza os partidos da maioria pelo sucesso ou insucesso do governo. Dá-se a aproximação do representante político ao cidadão eleitor e a recuperação da capacidade operacional das maiorias partidárias. Nos regimes parlamentares prevalece o partido sobre o governante. A disputa eleitoral se concentra entre os partidos, sendo que a chefia dos governos cabe ao comandante da legenda que detiver a maioria de votos, cuja liderança é tarefa dos seus membros. A rigor não haveria necessidade de muito mais de dois partidos, situação e oposição, porque aí o foco da discussão seria o interesse geral.

Quanto ao sistema eleitoral, há necessidade de reforço nas cláusulas de barreira, adoção do voto distrital misto, de lista e, não menos importante, correção da sub-representação de São Paulo e a superrepresentação de Estados menos populosos. O distrito reproduz a nível local a lógica da eleição majoritária, permite maior proximidade e identificação e convívio entre o eleitor e o candidato. Hoje, o voto proporcional com lista aberta encarece as campanhas e dificulta a capacidade do eleitor de fazer uma escolha informada sobre os candidatos.

O dilema do sistema presidencialista é a legitimidade dual. O presidente em exercício e os partidos políticos deveriam ceder poder, mediante referendo, em favor de um processo deliberativo que produza uma nova Constituição. O País precisa ir além das reformas fatiadas via projetos de emenda constitucional e lei complementar. Os constituintes brasileiros escreveram uma Constituição programática, que pretendia, além de fixar as regras do jogo, determinar os seus resultados. Método certamente mais exequível, porém menos eficaz. Não basta equilíbrio macroeconômico e ajustes em contas públicas, é preciso voltar a falar em planejamento.

O que falta é uma reengenharia do Estado, desta vez, de baixo para cima, ao contrário da nossa atávica herança colonial. Uma vez legitimada a democracia, partidos de centro, próximos à esquerda ou à direita, é que deveriam prevalecer, enquanto partidos marginais lutariam para que as suas ideias fossem absorvidas pelo centro. Nessa relação entre governo e parlamentares dar-se-ia o entendimento entre o Estado e a nação, num regime capaz de conciliar no País um estilo semelhante às acima referidas democracias, “contemporâneas” e “efetiva”.

 

3 comentários:

  1. Anônimo1/6/24 12:05

    As vezes fico de boca aberta com certas atitudes das facções disseminadoras dos partidos marginais, na tentativa de mudar até a nomenclatura, criando diversos adjetivos sobre o que é substantivo, masculino, singular e plural sem nenhuma ação das academias dos imortais das letras

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  2. Finalmente alguém percebeu o desastre institucional que é o atual presidencialismo brasileiro e concluiu que a solução passa pelo parlamentarismo ou sua variante o semipresidencialismo.
    O presidencialismo brasileiro é uma cópia degradada do presidencialismo americano. É só comparar. Ver artigo "A mãe de todas as reformas" de minha autoria publicado em janeiro de 2022.
    Segue o link
    https://aterraeredonda.com.br/a-mae-de-todas-as-reformas/

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  3. Excelente texto! Repito uma frase fundamental:
    "Não basta equilíbrio macroeconômico e ajustes em contas públicas, é preciso voltar a falar em planejamento."
    O planejamento nunca foi tão desprezado pelos governos, federal e estaduais, como nos últimos anos! O único planejamento que fazem é para SE REELEGEREM na próxima eleição!

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