quinta-feira, 20 de junho de 2024

Cora Rónai - O debate abortado

O Globo

O Congresso é apenas espelho da sociedade. Somos um país retrógrado, perverso, hipócrita e misógino. O Brasil é um desgosto que não passa

Em 2009, o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos que fizeram o aborto de uma menina de 9 anos (9!) que havia sido estuprada pelo padrasto. O arcebispo não só não excomungou o padrasto, como ainda fez questão de dizer que o aborto era um crime pior do que o estupro. Houve uma enxurrada de artigos horrorizados na imprensa, e eu, otimista que era, achei que alguma coisa poderia mudar no país.

“Minha esperança é que esse tiro funesto saia pela culatra”, escrevi. “A discussão sobre o aborto, que a Igreja insiste em abafar sempre que vem à tona, voltou reforçada. Já não era sem tempo. A criminalização do aborto é uma das maiores violências institucionais contra as mulheres, especialmente as menos favorecidas, que por vezes se veem vítimas de procedimentos tão primitivos quanto a mente do arcebispo de Olinda e Recife.”

Naquela época, a bancada evangélica tinha 63 deputados e três senadores. Parecia muito, e era mesmo, mas hoje são 202 deputados e 26 senadores. Lula e o PT estavam no segundo mandato, com altos índices de aprovação — e zero interesse na pauta.

Em 2014, ano eleitoral, o assunto voltou aos jornais: Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, desapareceu depois de fazer um aborto clandestino. Seu corpo foi encontrado carbonizado, dias depois. Escrevi novamente.

“Não sei o que acho pior: uma candidata que é abertamente contra o aborto, uma candidata que não tem coragem de dizer que não é ou um candidato que se diz satisfeito com a nossa legislação obscurantista. As três posições se equivalem. Estamos em pleno ano de 2024, Constantinopla caiu em 1453 e, não obstante, continuamos gastando tempo e energia com essa discussão bizantina. Fazer ou não fazer aborto é questão de foro íntimo. Quem for contra aborto que não aborte, mas não queira impor as suas convicções ao resto da sociedade. Sabemos onde isso vai dar: aí está essa pobre moça, obrigada pela excelente legislação em vigor a procurar criminosos para se livrar da gravidez indesejada.”

Em 2016, eu ainda não tinha aprendido:

“A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra ‘aborto’ basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.”

Que tonta, eu.

Mas me curei. Hoje nem acho mais que o problema esteja só em Brasília: parlamentar não surge do nada. O Congresso é apenas espelho da sociedade. Somos um país retrógrado, perverso e hipócrita, misógino do Oiapoque ao Chuí.

O Brasil é um desgosto que não passa nunca.

2 comentários:

  1. Não podemos banalizar nem a proibição nem a legalização do aborto,a questão é complexa demais,quando,por exemplo,o embrião,ou o feto começa sentir dor?

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  2. Excelente texto!

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