O Estado de S. Paulo
O Rio Grande do Sul expôs sentimentos morais em ato, fazendo predominar a ajuda ao próximo, para além de qualquer tipo de clivagem partidária
Há eventos, na História e em vivências pessoais, que trazem à tona facetas e propriedades da natureza humana que estavam adormecidas, sufocadas ou simplesmente desconsideradas, seja por não serem solicitadas, seja por não serem cultivadas. No entanto, irrompem em momentos em que são necessárias, o que pode ocorrer em situações extremas, como em guerras ou calamidades, a exemplo da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.
Em suas vidas normais, as pessoas estão
voltadas para seus afazeres cotidianos, em que imperam os valores orientados
pelas necessidades profissionais, sociais e econômicas, em que primam as
determinações do eu, do amor próprio ou do que se denomina egoísmo. Não se
trata aqui de uma crítica ao egoísmo, algo normal por ser nada mais do que uma
forma do amor de si, como tão bem formulou um libertino inglês, Bernard de
Mandeville, em sua famosa obra A Fábula das Abelhas, publicada no Brasil pela
editora Topbooks. Em linguagem corrente, ninguém gosta de se chicotear, pelo
menos em comportamentos normais.
O que está em questão é algo bem diferente, a
saber, o surgimento de sentimentos morais, quando o outro não apenas solicita,
mas também a própria pessoa é interiormente solicitada, como na solidariedade
para com os mais carentes. Aparece uma generosidade talvez adormecida, ganhando
a cena através de comportamentos altruístas. O outro ganha uma nova posição,
superando a natureza humana em sua feição somente egoísta, na medida em que
avulta a preocupação com os outros. O Rio Grande do Sul expôs sentimentos
morais em ato, fazendo predominar a ajuda ao próximo, para além de qualquer
tipo de clivagem partidária. A sociedade civil, por si mesma, passou a atuar,
sem esperar por um poder público, que, naquele momento, ainda estava atordoado,
inerte. A impotência desse mostrou a importância daquela.
Em sua célebre obra An Essay on the History
of Civil Society (Um Ensaio sobre a História da Sociedade Civil), de 1767,
publicada no Brasil pela Editora Unesp, Adam Ferguson, um filósofo escocês,
representante do iluminismo, elaborou um pensamento tendo como premissa a
análise da natureza humana, tomada em suas propriedades egoístas e altruístas,
ambas convivendo e se opondo diferentemente em vários períodos históricos.
Trata-se de uma obra infelizmente pouco conhecida, embora em sua época tenha
exercido grande influência sobre Hegel e Marx, apesar de sua filosofia deles se
diferenciar.
Sentimentos como os de compaixão,
benevolência, humanidade, disposições amigáveis, algo que se expressa
igualmente em comportamentos que procuram evitar ferir o próximo, adquirem
preponderância. Em situações de calamidade, muda a relação de alteridade, visto
que uma pessoa qualquer passa a ser vista diferentemente. Não é apenas o
interesse que move o comportamento humano, algo natural em condições normais,
mas uma propensão igualmente natural de ajuda aos que merecem atenção. Uma
pessoa que, em uma certa posição, poderia ser tida por um inimigo potencial
ganha a feição de um amigo possível, alguém com quem podemos compartilhar
afeição e solidariedade.
Impressionante na experiência gaúcha, ainda
em curso, foi o voluntariado, quando as pessoas expuseram o que de melhor
tinham dentro si. Foram doações em dinheiro, mantimentos, colchões e
cobertores, prédios para abrigo, onde humanos e cachorros conviveram na
necessidade mais extrema. Os desabrigados ou os deslocados para casas de amigos
e familiares foram objeto de atenção e cuidado. Alguns abrigos foram
providenciados pelo poder público, Estado e prefeituras, outros criados graças
à iniciativa privada. Observou-se mesmo casos em que tudo era privado, desde o
prédio até as refeições e condições de higiene, passando pela própria
segurança, igualmente privada.
Na tragédia, o espetáculo do comportamento
benevolente foi belo, um incentivo à moralidade, no interior de um quadro
horroroso, com cenas de destruição, ruas lamacentas, cheiro de esgoto e de
cadáveres de animais e o abandono generalizado. A beleza surgiu em meio da
feiura mais aguda, mesmo daquela em que pessoas procuraram prejudicar o próximo
com saques, roubos, agressões, assédios sexuais, principalmente de crianças e
mulheres. Tornou-se necessário, inclusive, criar abrigos exclusivos para essas
mulheres e crianças, graças à segurança pública ou privada.
Os sentimentos morais compareceram acoplados
a uma ação da sociedade civil que, na calamidade extrema, tomou os seus
problemas presentes em mãos. Na ausência inicial do poder público, o
voluntariado e comportamentos altruístas mostraram como, em condições de
emergência, aparece uma auto-organização social, que até então não se exibia.
Espera-se agora, na etapa de reconstrução que começa, que os poderes públicos,
União, Estado e municípios, utilizem os recursos dos pagadores dos impostos, os
cidadãos, para que essa noção social e moral do bem comum possa se realizar.
O poder público sempre esteve presente.
ResponderExcluirO Ademar tem total razão. Novamente, o colunista, pouco interessado na Verdade, busca divulgar sua visão antigovernamental e supervalorizar a iniciativa privada. Por exemplo:
ResponderExcluir"Alguns abrigos foram providenciados pelo poder público, Estado e prefeituras, outros criados graças à iniciativa privada. Observou-se mesmo casos em que tudo era privado, desde o prédio até as refeições e condições de higiene..."
O colunista dá a entender que os abrigos foram mais ou menos igualmente criados e mantidos por governos e pela iniciativa privada. Isto é imensamente FALSO! A grande maioria dos abrigos, e a imensa maioria dos abrigados, é mantida pelo PODER PÚBLICO. O colunista tenta transformar a EXCEÇÃO (abrigos inteiramente privados) em regra, quando a REGRA (grande maioria dos casos) são abrigos CRIADOS E MANTIDOS por prefeituras, com apoio dos governos estaduais e federais, além das doações das pessoas e empresas.
Colunista MAL INTENCIONADO e despreocupado com a Verdade, ou seja, um pseudofilósofo!