segunda-feira, 3 de junho de 2024

Denis Lerrer Rosenfield - Sentimentos morais

O Estado de S. Paulo

O Rio Grande do Sul expôs sentimentos morais em ato, fazendo predominar a ajuda ao próximo, para além de qualquer tipo de clivagem partidária

Há eventos, na História e em vivências pessoais, que trazem à tona facetas e propriedades da natureza humana que estavam adormecidas, sufocadas ou simplesmente desconsideradas, seja por não serem solicitadas, seja por não serem cultivadas. No entanto, irrompem em momentos em que são necessárias, o que pode ocorrer em situações extremas, como em guerras ou calamidades, a exemplo da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.

Em suas vidas normais, as pessoas estão voltadas para seus afazeres cotidianos, em que imperam os valores orientados pelas necessidades profissionais, sociais e econômicas, em que primam as determinações do eu, do amor próprio ou do que se denomina egoísmo. Não se trata aqui de uma crítica ao egoísmo, algo normal por ser nada mais do que uma forma do amor de si, como tão bem formulou um libertino inglês, Bernard de Mandeville, em sua famosa obra A Fábula das Abelhas, publicada no Brasil pela editora Topbooks. Em linguagem corrente, ninguém gosta de se chicotear, pelo menos em comportamentos normais.

O que está em questão é algo bem diferente, a saber, o surgimento de sentimentos morais, quando o outro não apenas solicita, mas também a própria pessoa é interiormente solicitada, como na solidariedade para com os mais carentes. Aparece uma generosidade talvez adormecida, ganhando a cena através de comportamentos altruístas. O outro ganha uma nova posição, superando a natureza humana em sua feição somente egoísta, na medida em que avulta a preocupação com os outros. O Rio Grande do Sul expôs sentimentos morais em ato, fazendo predominar a ajuda ao próximo, para além de qualquer tipo de clivagem partidária. A sociedade civil, por si mesma, passou a atuar, sem esperar por um poder público, que, naquele momento, ainda estava atordoado, inerte. A impotência desse mostrou a importância daquela.

Em sua célebre obra An Essay on the History of Civil Society (Um Ensaio sobre a História da Sociedade Civil), de 1767, publicada no Brasil pela Editora Unesp, Adam Ferguson, um filósofo escocês, representante do iluminismo, elaborou um pensamento tendo como premissa a análise da natureza humana, tomada em suas propriedades egoístas e altruístas, ambas convivendo e se opondo diferentemente em vários períodos históricos. Trata-se de uma obra infelizmente pouco conhecida, embora em sua época tenha exercido grande influência sobre Hegel e Marx, apesar de sua filosofia deles se diferenciar.

Sentimentos como os de compaixão, benevolência, humanidade, disposições amigáveis, algo que se expressa igualmente em comportamentos que procuram evitar ferir o próximo, adquirem preponderância. Em situações de calamidade, muda a relação de alteridade, visto que uma pessoa qualquer passa a ser vista diferentemente. Não é apenas o interesse que move o comportamento humano, algo natural em condições normais, mas uma propensão igualmente natural de ajuda aos que merecem atenção. Uma pessoa que, em uma certa posição, poderia ser tida por um inimigo potencial ganha a feição de um amigo possível, alguém com quem podemos compartilhar afeição e solidariedade.

Impressionante na experiência gaúcha, ainda em curso, foi o voluntariado, quando as pessoas expuseram o que de melhor tinham dentro si. Foram doações em dinheiro, mantimentos, colchões e cobertores, prédios para abrigo, onde humanos e cachorros conviveram na necessidade mais extrema. Os desabrigados ou os deslocados para casas de amigos e familiares foram objeto de atenção e cuidado. Alguns abrigos foram providenciados pelo poder público, Estado e prefeituras, outros criados graças à iniciativa privada. Observou-se mesmo casos em que tudo era privado, desde o prédio até as refeições e condições de higiene, passando pela própria segurança, igualmente privada.

Na tragédia, o espetáculo do comportamento benevolente foi belo, um incentivo à moralidade, no interior de um quadro horroroso, com cenas de destruição, ruas lamacentas, cheiro de esgoto e de cadáveres de animais e o abandono generalizado. A beleza surgiu em meio da feiura mais aguda, mesmo daquela em que pessoas procuraram prejudicar o próximo com saques, roubos, agressões, assédios sexuais, principalmente de crianças e mulheres. Tornou-se necessário, inclusive, criar abrigos exclusivos para essas mulheres e crianças, graças à segurança pública ou privada.

Os sentimentos morais compareceram acoplados a uma ação da sociedade civil que, na calamidade extrema, tomou os seus problemas presentes em mãos. Na ausência inicial do poder público, o voluntariado e comportamentos altruístas mostraram como, em condições de emergência, aparece uma auto-organização social, que até então não se exibia. Espera-se agora, na etapa de reconstrução que começa, que os poderes públicos, União, Estado e municípios, utilizem os recursos dos pagadores dos impostos, os cidadãos, para que essa noção social e moral do bem comum possa se realizar.

 

2 comentários:

  1. O poder público sempre esteve presente.

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  2. O Ademar tem total razão. Novamente, o colunista, pouco interessado na Verdade, busca divulgar sua visão antigovernamental e supervalorizar a iniciativa privada. Por exemplo:
    "Alguns abrigos foram providenciados pelo poder público, Estado e prefeituras, outros criados graças à iniciativa privada. Observou-se mesmo casos em que tudo era privado, desde o prédio até as refeições e condições de higiene..."
    O colunista dá a entender que os abrigos foram mais ou menos igualmente criados e mantidos por governos e pela iniciativa privada. Isto é imensamente FALSO! A grande maioria dos abrigos, e a imensa maioria dos abrigados, é mantida pelo PODER PÚBLICO. O colunista tenta transformar a EXCEÇÃO (abrigos inteiramente privados) em regra, quando a REGRA (grande maioria dos casos) são abrigos CRIADOS E MANTIDOS por prefeituras, com apoio dos governos estaduais e federais, além das doações das pessoas e empresas.
    Colunista MAL INTENCIONADO e despreocupado com a Verdade, ou seja, um pseudofilósofo!

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