O Globo
Não está claro que pena seria reservada a
crianças brasileiras que engravidaram por estupro
Cena modorrenta no plenário da Câmara
dos Deputados em Brasília. Grupinhos de parlamentares, alguns
sentados, outros de pé, uns de frente e muitos de costas para a mesa presidida
pelo chefe da Casa, Arthur Lira.
Várias cadeiras vazias. O clipe de 40 segundos começa com Lira entediado
consultando o celular. Em seguida, aproxima o microfone e comunica em tom
monocórdio:
— Orientação de bancada pelo acordo feito.
A cena modorrenta não se altera. Quem se
interessasse em saber o que era pautado leria apenas “discussão e votação de
propostas legislativas”.
Lira pausa um pouco, confere a orientação de
bancada do PSOL e
finaliza assim a banalidade de seu dia:
— Em votação. Aqueles que aprovam a urgência
permaneçam como se acham. Aprovada.
Uma voz isolada dizendo “PCdoB contra,
presidente”, ainda consegue ser registrada. Com Lira já de pé, um retardatário
acrescenta, melancolicamente:
— Presidente, só para registrar a posição contrária do PT também.
Que país é este que, em 2024, aprova a
tramitação em regime de urgência de um projeto de lei equiparando o aborto
realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio? Por sorte este
país (ainda) não é o Brasil — quando informada da treva em votação, a grande
maioria da população, mesmo contrária à legalização do aborto, deverá se
manifestar contra a criminalização da mulher ou da criança estuprada que
interrompe sua repelente gravidez. Em três dias de pesquisa do instituto Quaest
para o Estúdio i e na enquete digital da própria Câmara de Deputados, a
desaprovação ao projeto dava uma surra nos que se manifestaram a favor.
Desconsidere-se, no caso, a aferição divulgada pelo deputado e pastor
evangélico Cezinha
de Madureira (PSD-SP), que, em entrevista a Julia Duailibi, da GloboNews,
afirmou ter pesquisa imbatível: a Bíblia. Indagado sobre o possível veto de
Lula ao projeto de lei, Cezinha foi taxativo:
Por ora, a aberração tentada por legisladores
com cara de paisagem parece ter sido um tiro no pé. Variadas rotas de escape já
foram traçadas pelos promotores da votação-relâmpago. O próprio Lira, tão
astucioso quanto vulpino, exauriu-se em explicações de que não havia mais
urgência para nada, o texto poderia ser modificado, quem sabe até arquivado.
Prometeu que escolheria uma mulher “nem muito a favor nem muito contra” como
relatora do projeto do deputado Sóstenes
Cavalcante (PL-RJ), empurrando a casca de banana para longe de si.
Repetindo: se aprovada em sua forma atual, a
medida criminalizaria até o aborto hoje protegido por lei (casos de anencefalia
do feto, perigo de vida para a gestante, gravidez por estupro). Com uma
alteração no Código Penal, a mulher estuprada que recorresse ao procedimento
com 22 meses de gestação estaria sujeita a pena de seis a 20 anos de
encarceramento — duas vezes maior que a máxima reservada ao estuprador (dez
anos). Não está claro que pena seria reservada a crianças brasileiras que
engravidaram por estupro (estudo de 2023 do Ipea aponta para 822 mil casos de
estupro a cada ano, dois por minuto, e seis em cada dez com idade até 14 anos),
nem o que aguardará os profissionais de saúde que acolherem pedidos de aborto à
luz do PL 1.904.
É tudo tão absurdo que se indignar não basta
— chegou a hora de cobrar coerência e clareza, exigir compromisso, informação e
posicionamento de quem foi eleito e de quem tem uma eleição pela frente. Isso
vale para governo Lula, partidos, Legislativo, Judiciário, todos nós e cada um
de nós. Há quase um século (1931) a Suprema Corte do México já
decidia ser inconstitucional a criminalização do aborto em caso de estupro da
gestante — apesar de a legalização federal do aborto naquele país só ter sido
aprovada em 2021. Há quase um século também (1935), a Alemanha nazista
introduziu sua legislação de controle da saúde reprodutiva da mulher,
legalizando o aborto por motivos de eugenia e purificação da raça ariana, mas
com perda de direitos civis e pena de prisão para quem se submetesse a aborto
sem o consentimento do Estado.
O Brasil de 2024 precisa saber que país
queremos ser. Uma sociedade indiferente ao abuso do corpo de suas meninas e
mulheres já perdeu o direito de ter um futuro.
Magnífica coluna! Parabéns à autora e ao blog, que divulga seu trabalho. Como diz a colunista: "É tudo tão absurdo que se indignar não basta"! Lira decidiu aprovar a urgência, e quando viu TANTAS reações contrárias, já diz que NÃO HÁ URGÊNCIA...
ResponderExcluirPois é!
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