The New York Times / O Estado de S. Paulo
Björn Höcke tem feito mais que levar a extrema direita para o mainstream; ele está fazendo o mainstream pender para a extrema direita
Em
cima de um pequeno palco de um bar numa cidade de arquitetura enxaimel do leste
alemão, o ideólogo de direita Björn Höcke contava
para um grupo de seguidores, no ano passado, uma história sobre seu iminente
julgamento. Ele tinha sido indiciado por dizer, “Tudo pela Alemanha” em um
comício político — infringindo leis alemãs que proíbem a propagação de slogans
nazistas.
Apesar
da iminência daquele julgamento, ele olhou para os fãs e lhes abriu um sorriso
maroto. “Tudo pela?”, perguntou ele.
“ALEMANHA!”,
gritaram todos.
Depois de uma década colocando em teste os limites do discurso político na Alemanha, Höcke, um dos líderes do partido Alternativa para a Alemanha, ou AfD, não precisa mais passar dos limites sozinho. A multidão faz isso por ele.
Aquele momento amalgama o motivo pelo qual, segundo seus críticos, Höcke, além de representar um desafio para a ordem política, ameaça também a própria democracia alemã.
Por
anos, Höcke tratou de desgastar proibições que a Alemanha impôs sobre si mesma
para evitar ser tomada por extremistas novamente. A posição alemã a respeito da
liberdade de expressão é mais dura que a de muitas democracias ocidentais,
consequência das amargas lições dos anos 30, quando os nazistas se valeram de
eleições democráticas para capturar os mecanismos do poder.
“Tudo
pela Alemanha” era o slogan gravado nos punhais dos soldados nazistas. Ao
ressuscitar frases como essa, afirmam os oponentes de Höcke, ele buscou tornar
as ideias fascistas mais aceitáveis numa sociedade em que essas expressões não
são apenas tabu, são ilegais.
Em
maio, juízes consideraram Höcke culpado de usar um slogan nazista
intencionalmente e lhe aplicaram uma multa equivalente a US$ 13 mil. Nesta
segunda-feira, em razão desse discurso no bar, Höcke foi julgado pela mesma
corte por usar o mesmo slogan — novamente.
Este
é apenas um dos muitos processos na Justiça que Höcke enfrenta atualmente — e
nenhum parece ter diminuído a ascensão de Höcke ou de seu partido. Nas eleições
deste mês para o Parlamento
Europeu, o AfD ficou em segundo lugar na Alemanha, superando os
partidos que governam o país.
Não
muito tempo atrás, Höcke se posicionava no extremo de um partido extremista. Ao
longo do tempo, ele trouxe o partido cada vez mais para o seu lado, tornando-o
ainda mais extremista — e, argumentam especialistas, influenciando todo o
ambiente político de direita na Alemanha nesse processo.
Para
os seus oponentes, Höcke personifica um esforço odioso da extrema direita de
desestigmatizar o passado nazista da Alemanha.
Para
seus apoiadores, Höcke é um defensor da liberdade linguística, um combatente
que tenta reaver palavras difamadas injustamente e, de maneira mais ampla,
preservar sua concepção de uma cultura alemã étnica.
No
último dia de seu julgamento, em maio, Höcke, de 52 anos e cabelos grisalhos,
vestiu um terno escuro para apresentar-se diante dos promotores de Justiça numa
sala de tribunal lotada — e, apaixonadamente, declarou-se inocente.
Apesar de ser ex-professor de história, Höcke insistiu que não sabia que estava usando um slogan nazista. As palavras vieram à sua cabeça espontaneamente, afirmou o réu, ignorando o fato de que, desde que foi acusado, ele persuadiu em duas ocasiões multidões a pronunciarem a frase nazista em seu lugar.
“Nós
queremos banir a língua alemã porque os nazistas falavam alemão?”, perguntou
ele aos juízes. “Até onde isso deve chegar?”
Os
julgamentos de Höcke, que recusou um pedido de entrevista para a elaboração
desta reportagem, são parte de uma nova guerra de narrativas sobre a história
recente da Alemanha e a respeito de quem pode exatamente se dizer alemão em um
país cada vez mais diverso e ansioso em razão de novos desafios econômicos e
estratégicos.
Se o
objetivo seu é plantar as sementes de um etnonacionalismo, com seus ecos do
fascismo, Höcke pode estar fazendo ganhos sutis.
Antes
do julgamento, muitos alemães nunca tinham ouvido o slogan nazista “Tudo pela
Alemanha”. Agora a frase tem sido repetida e debatida rotineiramente em
programas de TV e reportagens em todo o país.
Jogando
com a perseguição
A
história desempenhou um papel determinante na vida de Höcke.
Höcke
nasceu numa família conservadora de prussianos orientais, entre milhões de
alemães que viviam na Europa Oriental e fugiram dos avanços do Exército
Vermelho no fim da 2.ª Guerra e buscaram refúgio no que veio a se tornar
a Alemanha Ocidental.
Essa
história de deslocamento e perda na Alemanha foi, na visão de Höcke, ofuscada
pelo acerto de contas nacional com os crimes de guerra dos nazista e o
Holocausto.
Höcke
tem se valido de uma amargura persistente entre os alemães — particularmente na
região que pertenceu no passado à comunista Alemanha Oriental — que se sentem
ludibriados pela história e consideram que lhes foi negado o direito ao orgulho
nacional e à expressão.
Ele
acusa os vitoriosos Aliados da 2.ª Guerra de furtar dos alemães suas raízes.
“Deixou de haver vítimas alemãs”, afirmou ele num discurso, em 2017. “Havia
apenas alemães perpetradores.”
Höcke
se mudou para o Estado da Turíngia, no leste da Alemanha, em 2013. Por lá,
ajudou a estabelecer um comitê do AfD. Desde então, ascendeu à proeminência em
meio a uma série de controvérsias sobre terminologias.
Höcke
qualificava as autoridades da ex-chanceler Angela Merkel como uma “Tat-Elite”,
mesmo termo com que os oficiais da SS descreviam a si mesmos. Ele questionou
repetidamente a razão da palavra “Lebensraum”, que define “espaço vital” e era
empregada pelos nazistas no sentido de expansão territorial no Leste Europeu,
ainda ser evitada pelos alemães. E chamou o memorial do Holocausto em Berlim de
“monumento infame”.
As
invocações às ideias da era nazista são tão numerosas que um tribunal decidiu
que não é difamação críticos de Höcke descrevê-lo como fascista, mas um
“julgamento de valor com base em fatos”.
Por
anos, até seu próprio partido buscou escanteá-lo. Agora, seus aliados detêm
dois terços das posições de liderança dentro da legenda.
A
ascensão dos apoiadores de Höcke, afirmam analistas políticos, reflete a
evolução do AfD, de um pequeno partido conservador cético em relação à União Europeia para
uma legenda muito mais radical.
Seus
líderes passaram a promover o argumento de que o estatuto alemão de nação tem
base em linhagens sanguíneas e que somente duras políticas de deportação podem
evitar que a Alemanha e outras sociedades ocidentais sejam sobrepujadas por
imigrantes.
Hoje,
o AfD considera a si mesmo antiglobalista. O partido desconfia das elites
urbanas e do que percebe como esforços excessivos do governo nos combates à
pandemia de covid e à mudança climática. Muitos de seus líderes propagam teorias
conspiratórias que questionam a legitimidade do governo alemão no pós-2.ª
Guerra.
A
popularidade do AfD, afirmam especialistas, afetou discursos políticos em toda
a Alemanha. No ano passado, políticos de todo espectro no mainstream adotaram a
hostilidade à imigração promovida pelo AfD e até mesmo em relação a políticas
ambientais.
Os
líderes do AfD afirmam que os críticos entenderam errado.
“Não
houve nenhuma reorientação para a direita”, afirmou o porta-voz do AfD na
Turíngia, Torben Braga, que trabalhou para Höcke por anos e mantém uma foto do
político sobre sua mesa no escritório. “Ocorreu que certas convicções —
demandas políticas que sempre estiveram presentes na sociedade — encontraram
uma voz depois de ser suprimidas por décadas.”
Os
seguidores do AfD percebem os processos judiciais contra Höcke como uma caça às
bruxas para impedir seu despertar.
Essa
ideia de perseguição impregna a retórica de Höcke. Em um comício, no mês
passado, ele comparou a si mesmo com Sócrates, Jesus Cristo e Julian Assange —
colegas dissidentes “espancados pela clava da justiça”.
Coincidentemente
ou não, a história também exerce um papel enorme sobre o Estado que Höcke
representa.
Cem
anos atrás, a Turíngia foi o primeiro lugar onde políticos de extrema direita
alcançaram a maioria no Parlamento Estadual. Posteriormente, tornou-se o
primeiro Estado em que os nazistas conquistaram o poder.
Em
setembro, a previsão é que o AfD obtenha a maioria dos votos na eleição
estadual da Turíngia.
“Um
ano atrás, eu teria dito que seria impossível Höcke virar primeiro-ministro da
Turíngia”, afirmou o historiador Jens-Christian Wagner, que trabalha no
memorial do campo de concentração de Buchenwald, na Turíngia.
“Agora
eu digo que é improvável”, afirmou ele. “Mas ‘improvável’ significa que é
possível.”
Um
alter ego?
Em
2012, o sociólogo alemão Andreas Kemper começou a estudar a ascensão da
retórica anti-imigração na política alemã — o que despertou seu interesse no
AfD e nos discursos do então relativamente desconhecido Björn Höcke.
Höcke
usava o termo “economia orgânica de mercado”, que parecia ecoar a expressão
“ordem orgânica”, usada pelos nazistas em sua reorganização da economia, em
1934.
Kemper
afirmou que, buscando online por outros indivíduos que usavam a mesma
terminologia que Höcke, obteve “apenas um resultado exato”: Landolf Ladig, o
pseudônimo de um colaborador de uma revista neonazista.
Em um
artigo, Ladig descreveu os nazistas como o “primeiro movimento antiglobalista”
da história, que “teria se deparado com imitadores em todas as partes” caso
tivesse sido bem-sucedido. Alguns, afirmou o autor, sustentam até hoje essas
ideias: “As brasas ainda não se apagaram por aqui”.
Kemper
encontrou outras similaridades entre as palavras dos homens. A mais estranha
foi Ladig citando um livro mencionado por Höcke em um discurso — ambos
cometeram exatamente o mesmo erro nas citações.
Kemper
eventualmente publicou uma análise com uma acusação chocante: Landolf Ladig,
afirmou ele, era na verdade Björn Höcke. “Havia coincidências demais.”
Em
2015, a liderança do AfD pediu que Höcke esclarecesse a controvérsia assinando
uma declaração juramentada afirmando que nunca escreveu nem colaborou em
artigos sob o pseudônimo de Landolf Ladig.
Höcke
se recusou. “Não porque tenho algo a esconder”, disse ele a meios de imprensa
alemães na época, mas porque se tratava de “uma tentativa de me difamar”. Ele
insistiu que nunca escreveu sob nenhum pseudônimo.
O
serviço doméstico de inteligência da Alemanha citou em 2021 o trabalho de
Kemper quando classificou o ramo turíngio do AfD como uma organização
extremista de direita.
Desde
então, vários outros comitês do AfD, assim como a juventude do partido, foram
classificados como extremistas. Os líderes do AfD contestam essas
classificações, mas afirmam que elas não prejudicaram sua crescente
popularidade. Braga, o porta-voz do partido na Turíngia, afirmou que elas podem
até estar os ajudando.
“Minha
resposta a essa asserção constantemente repetida seria: continuem
escrevendo-a”, afirmou ele.
‘Autotrivialização’
Antes
de seu julgamento, Höcke participou de um debate televisionado, no qual
insistiu que é difamado intencionalmente. Ele insistiu que deplora o nazismo.
E, além disso, argumentou Höcke, muitos antes dele usaram equivocadamente a
frase “Tudo pela Alemanha” — até mesmo anúncios da Deutsche Telekom.
Essa
alegação chamou a atenção da empresa de telecomunicações — que negou a
afirmação de Höcke e solicitou uma ordem de cessar e desistir contra ele.
A
Deutsche Telekom compeliu Wagner, o historiador de Buchenwald, a voltar a
pesquisar uma coleção de livros em seu escritório publicados pela editora de
direita do escritor Götz Kubitschek, que é considerado o padrinho intelectual
de Höcke e do AfD.
Um
dos ensaios de Kubitschek, intitulado Autotrivialização, define uma
estratégia para atrair apoiadores.
O primeiro passo é fazer “cabeças de ponte” verbais, usando palavras controvertidas. O segundo é “entrelaçar-se com o inimigo” — sublinhando exemplos de figuras do mainstream que usam essas mesmas palavras — para semear dúvidas sobre quão radical uma ideia é realmente.
O
terceiro passo é “fazer-se inofensivo”, insistindo que essas regras estão
dentro das normas do mainstream.
O
ensaio termina com um alerta: o objetivo é parecer inofensivo — não se tornar.
Com
tantos esforços fracassando em se contrapor ao AfD, Wagner considera os
processos judiciais contra Höcke ainda mais importantes.
“Se
os políticos não conseguirem definir o limite”, afirmou ele, “o Judiciário,
pelo menos, definirá”.
Se houver um limite, contudo, Höcke o testará mesmo assim. No início de maio, ele pronunciou outro discurso na cidade de Hamm, no oeste da Alemanha, anteriormente às eleições europeias. Ele disse à multidão que os tempos estão mudando em sua pátria, acrescentando que “Os sinais apontam para uma tempestade”. Uma frase familiar para quem conhece a história alemã, usada por um jornal nazista em 1933, um dia antes de Hitler assumir o poder./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Muito bom! As semelhanças entre os extremistas de Direita são muito grandes, e não são meras coincidências. Parabéns ao blog por divulgar este texto!
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