O Estado de S. Paulo
O debate necessário passa por algo bem mais
profundo do que eficácia de uma articulação política. É um debate sobre a
sobrevivência da política
Cientistas políticos devem entender melhor
que eu. Acho estranho o que está acontecendo entre este governo chamado de
frente democrática e o Congresso.
As recentes derrotas do governo foram
interpretadas como fragilidade na articulação, relativa distância do
presidente. Esses argumentos não me convencem totalmente.
O Congresso é conservador, sempre foi. Desta
vez, é um pouco mais. Derrotas aqui e ali sempre vão acontecer. A análise me
parece limitada se avaliamos apenas por que o governo perdeu, e não como
perdeu.
Na verdade, quando se perde uma votação no Congresso, quase sempre isso significa uma derrota também de um setor da sociedade que apoia a proposta vencida. Essas pessoas nem sempre se incomodam apenas com o resultado, mas sim com a forma como se perde. É um pouco como no futebol. Seu time pode perder lutando e jogando bem, e isso é um consolo. Mas, quando perde de uma forma burocrática e sonolenta, quebram-se os laços de confiança.
O caso das chamadas saidinhas dos
prisioneiros é típico. Não há dúvida de que a maioria dos parlamentares queria
acabar com elas. E é muito provável que a maioria dos eleitores pense da mesma
forma.
A derrota numérica era previsível. Mas não
houve um debate intenso. Não se mostraram as condições das penitenciárias
brasileiras. Como dizia o escritor H. D. Thoreau, visitar as prisões é
essencial para conhecer um país.
Diante da possibilidade de um rico debate, a
base de centro-esquerda do governo praticamente se escondeu. Como explicar
isso?
A esquerda sempre foi pelo menos eloquente.
Parece que se intimidou com a defesa de uma tese minoritária. Ou mesmo que
perdeu sua força de argumentação mergulhada na zona de conforto por estar no
poder.
Se isso aconteceu como me parece, não estamos
diante apenas de problemas de articulação ou indiferença do presidente. Estamos
diante de um processo de declínio de uma força política que ameaça
transformá-la na geleia geral da qual pretendia se distinguir no passado.
Alguns observadores chegaram a falar em
envelhecimento dos quadros. Mas isso não é um forte argumento. Mahatma Gandhi e
Nelson Mandela já eram homens maduros quando venceram suas grandes batalhas.
A mesma noite de derrota nos deu também,
creio, um outro ensinamento. Dificilmente conseguiremos combater as chamadas
fake news por meio de medidas no Congresso.
Os parlamentares são conservadores, mas
regulamentar as redes sociais não é medida radical. A Alemanha o fez, a Escócia
acaba de fazê-lo. O problema no Brasil está basicamente na desconfiança de que
o controle das redes signifique censura, bloqueio à liberdade de expressão.
Nesse caso, o que é necessário avaliar é a
natureza da chamada frente democrática. Ela é composta de uma força hegemônica
que dá o tom em quase tudo, principalmente na política externa.
Quando a presidente do PT diz na China que
encontrou ali uma democracia efetiva, capaz de dar lições ao Ocidente, está
expressando uma posição própria. Quando Lula da Silva convida Nicolás Maduro e
faz uma prelação sobre a democracia venezuelana, também revela uma posição que
é dele e provavelmente da maioria de seu partido.
Mas isso é interpretado corretamente como uma
postura de governo, pois a oposição não vê o governo, ideologicamente, como uma
frente democrática, mas sim como um partido único.
Os políticos que foram incorporados ao
governo, como Geraldo Alckmin ou Simone Tebet, parecem ocupados em seus cargos,
ou satisfeitos com eles, a ponto de não representarem nenhum contraponto.
Neste contexto, é uma tarefa impossível
desmobilizar a resistência dos deputados a qualquer tipo de controle das redes
sociais, exceto o que se dá independentemente de sua vontade, no âmbito do
Tribunal Superior Eleitoral.
O governo tem falado nas vitórias em temas
econômicos e de política social. Na verdade, duas grandes áreas, porque
representam o bem-estar material. Mas conformar-se apenas com os aspectos
materiais pode ser um equívoco.
Ainda hoje, analistas políticos dizem é a
economia, estúpido, reduzindo tudo a um só e importante tópico.
No fim do século passado, a Universidade
Oxford editou uma série de volumes de pesquisas intitulada Crenças no Governo.
Não por acaso, o último tomo se intitulava O Impacto dos Valores. Tratava da
Europa e já falava na transição para objetivos não materiais, numa sociedade
mais participativa, na qual ideias, autoexpressão e preocupações estéticas
tornam-se politicamente relevantes.
Trinta anos depois, alguma coisa, ainda que
modestamente, chegaria por aqui. Talvez não sejamos tão estúpidos como pensam
os estrategistas.
A redução de tudo às preocupações materiais
é, no fundo, a suposição de que todos carregam a mesma deformação de alguns
políticos. Nesse caso, a complexa sociedade brasileira seria definida por um só
adjetivo: fisiológica.
O debate necessário passa por algo bem mais
profundo do que eficácia de uma articulação política. Na verdade, é um debate
sobre a sobrevivência da política, mergulhada numa crise profunda.
Cada vez mais admiro Gabeira e sua sabedoria! A Esquerda não precisa ser submissa ao maior partido deste campo, e a quantidade de m... que tal partido já fez cada vez mais compromete os bons resultados obtidos nos governos anteriores de Lula (e em parte perdidos nos de Dilma).
ResponderExcluirPode ser.
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