sexta-feira, 14 de junho de 2024

José de Souza Martins - Retrocessos na função social da terra

Valor Econômico

Para muitos, a emenda constitucional que trata das terras de marinha e o Projeto de Lei nº 709/2023 usurpam direitos sociais historicamente reconhecidos

Nas últimas semanas, duas propostas legislativas, apresentadas em casas do Congresso Nacional, suscitaram inquietações sociais e debates porque, para muitos, usurpam direitos sociais historicamente reconhecidos.

Uma, que tem por objetivo declarado privar os que são beneficiados pela reforma agrária de direitos a ela vinculados. Os relativos a medidas de apoio à consolidação dos assentamentos, necessárias a que a reforma produza os efeitos sociais e econômicos a que ela se destina. A outra, a emenda constitucional que trata das terras de marinha e supostamente privatiza as praias brasileiras.

As duas propostas se situam na concepção de ministro do governo Bolsonaro, expressa na reunião do ministério de 22 de abril de 2020: aproveitar a distração da mídia e da população com a pandemia para deixar a boiada passar por baixo das formalidades da lei, através do recurso às normas infralegais e desburocratizar o trato da questão ambiental.

Variante desse disfarce, o Projeto de Lei nº 709/2023, apresentado na Câmara dos Deputados, bloqueia o acesso aos benefícios legais aos que tenham invadido a terra para obtê-la.

O endereço confessado é o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas o serão também os proprietários de milhões de hectares de terras que não conseguiram produzir documentação que legitimasse o suposto direito quando chamados a fazê-lo pelo governo federal. Nada impede que os movimentos sociais pleiteiem na Justiça que equivalente medida os alcance, como os benefícios fiscais, favorecimento e financiamentos e outros benefícios.

O regime militar separou propriedade da terra e propriedade do capital, isto é, das construções, equipamentos, plantações, o que é feito pelo trabalho. E o fez para desbloquear o desenvolvimento capitalista no campo, como outros países o fizeram.

O Estatuto da Terra, de novembro de 1964, estabeleceu os fundamentos institucionais da reforma agrária. Também sociais porque episódio da revolução burguesa no Brasil. Um empresariado que desconhece os fundamentos sociais de seus interesses de classe não percebe que ao opor-se à reforma opõe-se a si mesmo e ao futuro do capitalismo entre nós. O mesmo acontece com os membros do Congresso.

A Lei de Terras de 1850, em nosso direito fundiário, ocupou o lugar que, até 1822, fora da Lei de Sesmarias de 1375 aplicada no Brasil a partir da primeira metade do século XVI. Por essa lei, a Coroa, isto é, o Estado, tinha o domínio da terra e o fazendeiro tinha o direito de uso enquanto tornasse produtivas as terras que lhe fossem concedidas. Se não o fizesse, caíam elas em comisso, retornando à posse da Coroa para redistribuição a outrem.

A Lei de Terras, de 1850, preservou direitos e obrigações do regime sesmarial, como os relativos às terras comunais e ao que se chama de terras de marinha. Sem o saber, o MST reaviva valores de posse e uso da terra que procedem desse regime antigo.

Pela lei de 1850, o Estado, com ressalvas, transferiu o domínio sobre a terra aos particulares, criando um direito de propriedade baseado em posse e domínio. Com isso criou uma anomalia, a de substituir o escravo, como fundamento dos empréstimos hipotecários, pela terra, que não tinha propriamente valor.

Criou a questão agrária brasileira, fundamento de conflitos que o regime militar quis resolver com várias medidas limitantes do direito absoluto de propriedade.

A partir da Revolução de Outubro de 1930, já no âmbito do processo de industrialização e de modernização da economia brasileira, o Estado, paulatinamente, tomou medidas para reaver o domínio da terra, de que abrira mão em 1850.

Fê-lo lentamente a partir do Código de Águas, que separou o solo do subsolo, e portanto restringiu o direito de propriedade à superfície. Mesmo aí, a retomada de domínio prosseguiu em relação, também, à superfície no que se refere às florestas, aos territórios indígenas, aos lugares da memória histórica. O proprietário não pode ser dono de bens insuscetíveis de apropriação privada. Caso das terras comunais, expressamente reconhecidos pela Lei de Terras.

Um último esforço nesse sentido foi o do general Danilo Venturini, ministro de Assuntos Fundiários, em 1983, cujo ministério produziu uma consolidação das leis agrárias do país, como referência da precedência do trabalho, a posse útil, para agilizar a reforma agrária mediante decisão de um juiz de comarca em favor do trabalhador.

As duas medidas, tanto a que bloqueia a reforma agrária quanto a que desfigura o que são terras de marinha, revogam mais de cem anos de esforços políticos do país para reinstaurar a soberania e o domínio da nação sobre o seu território e o uso de suas terras.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário