quinta-feira, 27 de junho de 2024

Luiz Carlos Azedo - Pode apertar, mas ainda não pode acender agora

Correio Braziliense

O samba de Bezerra da Silva continua atual, porque o Supremo apartou traficantes de usuários de drogas, mas o consumo de maconha continua sendo ilícito e proibido em locais públicos

Caso ainda fosse vivo, o cantor e compositor pernambucano José Bezerra da Silva (1938-2005) estaria cantando um dos seus sambas que falam da maconha, talvez até tivesse feito uma nova canção, para comemorar o resultado final do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para o uso pessoal, encerrado nesta quarta-feira, após nove anos de discussão na Corte.

Para fugir da fome, Bezerra saiu do Recife (PE) aos 15 anos, apenas com a roupa do corpo, embarcado num navio que transportava açúcar para o Rio de Janeiro. Como outros sambistas, foi trabalhar na construção civil, como pintor de paredes. Exímio ritmista (tamborim, surdo e outros instrumentos), começou a carreira de músico na Rádio Clube, com Jackson do Pandeiro, para quem compôs suas primeiras músicas: O Preguiçoso e Meu veneno. Em 1969, pela gravadora Copacabana, lançou seu primeiro compacto. Depois de estudar oito anos de violão e harmonia, passou a fazer parte da Orquestra da Globo. Mas ficou famoso e ganhou dinheiro como o inventor do chamado sambandido, assim denominado porque seus sambas faziam muito sucesso nos presídios.

“Não fumo maconha, não cheiro cocaína, não bebo cachaça, não vou a pagode nem a futebol e tenho alergia a cigarro. Sou mangueirense, mas não vou à Mangueira. Quando a maré está legal, o máximo que faço é dar um passeio com a patroa”, dizia Bezerra. Sua “transgressão” foi fazer a crônica da realidade social dos morros, dos subúrbios e das cadeias. “Dizem que sou malandro, cantor de bandido e até revoltado/ Porque canto a realidade de um povo faminto e marginalizado”, se apresentou, em Partideiro Sem Nó na Garganta, do disco Presidente Caô Caô.

No mesmo LP, no samba Vítima da Sociedade, cantou: “Se vocês estão a fim de prender o ladrão/ Podem voltar pelo mesmo caminho/O ladrão está escondido lá embaixo/Atrás da gravata e do colarinho”. Seus parceiros são desconhecidos do grande público: Barbeirinho do Jacaré, Baianinho, Em Cima da Hora, Embratel do Pandeiro, Trambique, Zé Dedão, Popular P., Pedro Butina, Simão PQD, Wilsinho Saravá, Rubens da Mangueira, Pinga, Dunga da Coroa, Jorge Laureano, Adelzo Nilto, Edson Show, entre outros.

Nas letras desses compositores, os conflitos sociais emergem como quem ri da própria desgraça, de forma irônica ou áspera. Bezerra não gostava que o chamassem de pagodeiro: “Quando a música é feita por pobre, analfabeto ou crioulo, eles dizem que é pagode. Eu não aceito isso!”. Filho de Ogum, assíduo frequentador do terreiro do Pai Nilo, em Belfort Roxo, Bezerra da Silva passou a ser cantado por compositores de rock e MPB, quando queriam defender a legalização da maconha. Marcelo D2 gravou um álbum só para ele.

Discriminação e hipocrisia

Há uns 10 sambas de Bezerra muitos conhecidos, um dos quais inspira a coluna: “Vou apertar/Mas não vou acender agora (s’eimbora gente) / Vou apertar/ Mas não vou acender agora/ E se segura malandro/ Pra fazer a cabeça tem hora”, diz a letra de Malandragem dá um tempo. A rigor, a letra dessa música continua atual, porque o STF estabeleceu regras para separar traficantes de usuários de drogas, mas o consumo de maconha continua sendo ilícito e proibido em locais públicos. A diferença é que o usuário flagrado pela polícia será autuado, terá a maconha apreendida e sofrerá sanções administrativas, mas não pode ser preso e processado criminalmente.

Ao limitar o porte para uso pessoal a 40 gramas, a Corte estabeleceu um critério objetivo, que beneficiará os jovens pretos, pardos e pobres, que são tratados como criminosos, enquanto jovens brancos de classe média ou alta, portando a mesma quantidade ou mais de maconha, vão embora para casa e não são sequer autuados. Há muito preconceito, discriminação e hipocrisia.

O Brasil gasta R$ 591,6 milhões ao ano para manter na prisão pessoas condenadas por portar até 100 gramas de maconha, de acordo com estimativa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). São 19.348 presos nessa condição. A pesquisa apurou também que 8.591 presos portavam menos 25 gramas de maconha; custa R$ 262,7 milhões mantê-los na prisão, R$ 30.580 para cada preso. O Brasil tem 852 mil presidiários, sendo 650 mil em regime fechado.

O cânhamo chegou ao Brasil nas velas e nos cordames das caravelas. A Diamba (maconha) passou a ser cultivada a partir de 1549, trazida pelos escravos, como “fumo de Angola”. A Coroa portuguesa incentivava sua exportação para a metrópole e a rainha Carlota Joaquina, esposa do Rei D. João VI, aqui adquiriu o hábito de tomar chá de maconha. Somente em 1889, com a República e a proibição da prática da capoeira, o governo passou a combater sistematicamente os cultos de origem africana e o uso da cannabis.

Desde então, a maconha passou a ser reprimida intensamente, principalmente durante o regime militar. Em 1976, quando Bezerra lançava seu segundo disco, Rita Lee e Gilberto Gil, que ainda fuma todo dia, foram presos em Florianópolis, na excursão dos Doces Bárbaros, flagrados com alguns baseados nos seus quartos de hotel. Foi nesse contexto que Bezerra começou a cantar a maconha. Seu nome foi associado à defesa da legalização dessa erva: “Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca, diz aí”. O samba A fumaça já subiu pra cuca foi premonitório: “Se quiser me levar eu vou, nesse flagrante forjado eu vou/ Mas na frente do homem que bate o martelo, / é que a gente vai saber quem foi que errou”.

 

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