sábado, 8 de junho de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Os canhões do mercadismo

CartaCapital

As lições do especulador Soros ao funcionário Arminio Fraga

Em sua entrevista à Folha de S.Paulo, o ex-funcionário de George Soros, Arminio Fraga, também ex-presidente do Banco Central, lançou uma advertência a respeito da provável escolha de Lula para ocupar o posto que lhe pertenceu no Brasil.

“Se quem entrar se meter a besta, a inflação começar a subir e o mercado perder a confiança, vai ser um grande fiasco político, inclusive, e rápido. Esse discurso assim mais frouxo na política monetária só atrapalha, porque fica a desconfiança, e o custo aumenta. É uma tristeza ver como a coisa está sendo conduzida, as pressões políticas explícitas, os ataques ao BC, a ideia de que responsabilidade fiscal é uma grande maldade.”

A menção a George Soros não vai espantar o leitor bem informado de ­CartaCapital. Certamente, nossos assinantes sabem que Arminio Fraga trabalhou na instituição financeira do assim chamado megaespeculador.

Em 17 de fevereiro de 1999, a Folha de S.Paulo estampou uma coluna de Elio Gaspari. O texto do jornalista cuidava de uma suspeita lançada contra uma manobra financeira do megaespeculador com títulos da dívida brasileira.  Aí vai um trecho:

“Na quinta-feira da semana passada, o professor Paul Krugman, um dos mais ouvidos economistas do mundo, acusou o investidor George Soros de ter ganho dinheiro à custa da boataria que antecedeu a sexta-feira 29 de janeiro. Nela, o dólar bateu a cotação de 2,10 reais. Segundo Krugman, Soros comprou títulos da dívida externa brasileira na baixa provocada pelos boatos de que o governo calotearia sua dívida interna. Vendeu-os na alta, uma semana depois, quando se viu que o governo não fizera confisco algum. Quem jogou nessas cartas ganhou, em apenas sete dias, pelo menos 5% do capital investido. Soros teria feito isso baseando-se em informações privilegiadas que Fraga recebera.

“Tanto Fraga quanto o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Pedro Parente, têm insistido em declarar nula a questão, sob o argumento de que ele só foi sondado e convidado para assumir a presidência do Banco Central nos dias 30 (sábado) e 31 (domingo)”.

Conheci George Soros em sua visita ao Brasil, quando participou de um programa Roda Viva da TV Cultura. Convidado pela emissora para participar do time de entrevistadores, tratei de aproveitar a ocasião. Terminada a sessão, conversei com o entrevistado a respeito de Karl ­Popper e Arminio Fraga.

Soros rejeitou energicamente a suspeita que bateu às costas de Fraga e entusiasmou-se com a conversa sobre a obra de Karl Popper. O bate-papo enveredou por outros temas da vida social e Soros recomendou que eu me empenhasse na leitura de seu último livro.

Chegou tarde. Já havia lido.

Em seu livro A Crise do Capitalismo, George Soros faz um depoimento esclarecedor sobre sua experiência de investidor nos mercados financeiros: “Como participante anônimo dos mercados financeiros nunca tive de pesar as consequências sociais de minhas ações. Estava consciente de que, em algumas circunstâncias, os efeitos talvez fossem danosos, mas justificava minha negligência em relação às consequências prejudiciais pelo fato de estar jogando conforme as regras. O jogo era muito competitivo e, se ainda me impusesse limitações adicionais, terminaria derrotado. Além disso, percebi que meus escrúpulos morais não fariam qualquer diferença para o mundo real, em face das condições de competição eficaz ou quase perfeita predominantes nos mercados financeiros; se me abstivesse de agir, outra pessoa assumiria o meu lugar”.

Ao ler a entrevista de Arminio, assaltou-me a suspeita de negligência do ex-funcionário de Soros com os escritos de seu ex-patrão. Suspeita, certamente, mais fundamentada que aquela levantada por Paul Krugman.

Os canhões de Arminio foram engatilhados, como já foi dito, para detonar a provável escolha do próximo presidente do Banco Central: “Se quem entrar se meter a besta, a inflação começar a subir e o mercado perder a confiança, vai ser um grande fiasco político, inclusive, e rápido”. Os fiascos têm sido frequentes no exercício da política econômica brasileira. A frequência foi acalentada nos bastidores do receituário mercadista que imobiliza o crescimento econômico e impõe as desgraças da desigualdade.

Retornamos a George Soros e seu conceito de reflexividade para investigar a natureza das relações entre os protagonistas dos mercados financeiros. “A característica distintiva da reflexividade é que ela introduz um elemento de incerteza no pensamento dos participantes e um elemento de indeterminação na situação em que participam.”

Arminio armou-se até os dentes para detonar a provável escolha do próximo presidente do BC

Soros apresentou com clareza impressionante a fragilidade dos supostos que sustentam as teorias dos mercados competitivos, livres, “eficientes”, e denunciou o seu caráter predominantemente apologético. A crise financeira de 2008, como tantas outras, esgueirou-se silenciosa nos subterrâneos da economia globalizada, enquanto seus acólitos midiáticos e acadêmicos evangelizavam o público com as crendices sobre os mercados eficientes e “competitivos” no provimento de informações para os agentes racionais e otimizadores. É reconfortante acreditar em Papai Noel.

Quando irrompeu das profundezas, o terremoto financeiro exigiu os cuidados das políticas de socorro às instituições financeiras. Incapazes de revigorar as economias, socializaram prejuízos e acentuaram a concentração de renda e resgataram dos baixios do fracasso a subteologia dos mercados eficientes e competitivos.

Soros reconhece que o fundamentalismo do laissez-faire não é diferente, em essência, daquele que sustentou as experiências malogradas do socialismo real. Ambos têm em comum a certeza do conhecimento da verdade “última”, atingida a partir de procedimentos científicos. Uns e outros têm pretensões de praticar a engenharia social e almejam enfiar a sociedade nos escaninhos estreitos de suas certezas funestas. Vai sobrar sociedade.

Soros, desdenhosamente, acusa a teo­ria dos mercados eficientes – cujas forças fundamentais moveriam a economia continuamente para a senda do equilíbrio e da estabilidade – de pertencer à categoria de superstições científicas contaminadas irremediavelmente pelo determinismo. A partir de uma concepção ultrapassada do método científico, a teoria econômica pretende tirar conclusões práticas relevantes, recomendar políticas e impor reformas.

A ortodoxia de Arminio Fraga parte das certezas do equilíbrio para imaginar uma economia harmônica. É importante registrar o caráter reducionista desse pensamento que se arroga foros de cientificidade. Sua função não é propriamente a de indagar ou investigar, senão simplificar: certo ou errado, bem ou mal. Trata-se de justificar as tropelias da besta e não de compreender ou explicar. •

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

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