Chegando à Índia, resolvemos nos concentrar no norte, no estado de Uttar
Pradesh, por umas boas três semanas. Ali se veem preciosidades como o rio
Ganges em Varanassi, o Taj Mahal e o rubro forte de Agra, entre outras.
Não apenas templos ou palácios retinham nossas atenções. Já sendo pais, instintivamente nós olhávamos as crianças com uma atenção especial, talvez tentando levar a elas uma forma de carinho transmitida pelo olhar. É comum na nossa cultura brasileira passar a mão na cabeça de uma criança recém-conhecida, como uma expressão de afeto. Mas isso não pode ser feito na Indonésia. Ali, a mão passada sobre uma cabecinha estaria obstruindo a relação dessa criança com os entes superiores que olham e cuidam dela lá do alto. Viajando e aprendendo.
No entanto, no norte da Índia notamos uma coisa diferente. Vez ou outra
víamos crianças vestidas de uniformes limpinhos e – a julgar pelas idades –
indo para escolas primárias. Mas estas crianças, se me lembro – ou por questão
de horário, talvez –, não eram maioria. A maioria – na casa dos seis ou sete
anos para cima – era sempre vista trabalhando. Sim, trabalhando nas mais
diferentes atividades nas áreas urbanas: feiras, mercados públicos, pequenas
lojas, carregando compras, ferramentas, cestos etc. E mais ainda nas áreas
rurais, no plantio ou nas colheitas.
Mais tarde, lendo sobre a relação criança-trabalho, esse aspecto
"cultural" da Índia, fiquei sabendo que o Uttar Pradesh é o estado
que mais emprega crianças, cerca de 20 por cento da população infantil de todo
o país, segundo dados da Save the
Children, de 2016. No mesmo ano
havia 8,3 milhões de crianças trabalhando, com idades de cinco a quatorze anos.
Aprendi também que naquele país existe um tipo de trabalho chamado bonded labour. Este o nome dado a
qualquer tipo de trabalho que é feito por uma criança, sem remuneração, para
pagar uma dívida assumida pelo pai ou responsável. Há outro nome para isso a
não ser escravatura?
Desde 1986 quase uma dezena de leis foram criadas na Índia, principalmente depois de 2005, para mudar esse quadro. O país é também signatário de um tratado das Nações Unidas, o Sustainable Development Goals, para eliminar o trabalho de crianças até 2025. Em termos de trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho, os primeiros lugares ainda estão com Burkina Faso, Somália, Etiópia e Haiti.
Tecnologia e escravatura
Em 2024, a Índia é listada como a quinta potência mundial, em termos de
Produto Interno Bruto. Esse boom
econômico tem sido impulsionado pela adoção das mesmas tecnologias adotadas
mundo afora. No entanto, dois terços da população do país ainda vive abaixo da chamada
linha de pobreza. A essas condições de pobreza se somam normas culturais
milenares que sem dúvida irão manter o quadro atual por longo tempo.
Com a ajuda de Claude Levi-Strauss, entendo que "cultura", no
contexto acima, é aquele conjunto de atividades, crenças, símbolos, valores e
sanções que, concebidas e adotadas ao longo de certo tempo – geralmente longo –,
retratam ou definem determinado grupo humano. A característica mais forte da
tecnologia digital é a velocidade. Essas ferramentas, sistemas e dispositivos
que hoje podem gerar, armazenar ou processar dados, no meu entender, estão
também dando a luz a uma nova cultura, uma cultura mais ampla, de alcance global
e não mais restrita a um local, como antes.
A mesma tecnologia que hoje impulsiona as economias mundo afora passou a
ocupar um lugar preponderante no contexto da vida privada da maioria dos
indivíduos, com o advento das redes sociais. Quando a internet ainda engatinhava
– e ainda se lembrando do envelope, dos selos e da fotografia em papel –, muitas
mães postavam fotos de seus filhos no primeiro dia de escola, ou soprando a
vela no bolo de aniversário, para os avós ou parentes próximos. O narcisismo,
fator dominante dessa nova cultura, na última década mudou totalmente esse
quadro. Este narcisismo mais a ganância de alguns pais – de fato, de muitos – fizeram
deles influencers que passaram a ver
seus filhos como commodities, como objetos
de sua propriedade e que podem gerar ganhos.
Em artigo de março do ano passado na Teenvogue.com, a jornalista Fortesa
Latifi vai fundo nesse assunto. Por razões óbvias ela não cita nomes reais. O
artigo examina em detalhe o caso de uma adolescente americana que lamenta sua
experiência como objeto nas redes desde sua tenra infância. Entre os canais da
família, só o Youtube já teve mais de um bilhão de acessos. Quando sua imagem
viralizou, o ganho com o esse mesmo canal deu aos pais uma nova casa e um carro
novo. Seus pais deixaram os empregos para gerenciar a "carreira" da
criança.
A multiplicação destes canais, como temos visto, está espalhando para o resto do planeta aquela mesma prática de abuso de privacidade e de exploração de crianças visando a ganhos financeiros. A velocidade da tecnologia nos traz de volta – em pouco mais de uma década! – um aspecto daquela cultura que levou mais de mil anos para se estabelecer na Índia. Já que um dos assuntos no momento é a regulamentação das redes sociais quanto a fake news, por que não colocar também nessa pauta o banimento dos canais que, em nome do entretenimento, vêm escravizando tantas crianças.
*Marcus
Cremonese é graduado em jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias
publicadas no Jornal do Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mudando-se para
a Austrália, publicou no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de
Londres. Produz ilustrações científicas para livros e revistas médicas.
Interessante, bem argumentado.
ResponderExcluirMuito boa suas colocações sobre os malefícios da nova tecnologia e a destruição de culturas milenares.
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