Valor Econômico
Eleitor é punitivista, não aceita ser garfado em direitos nem se engana sobre a vítima de estupro
Foram duas derrotas consecutivas, num prazo
de duas semanas, impostas pela sociedade, nas redes sociais e nas ruas, à extrema-direita:
a proposta de emenda constitucional que prevê a venda de terrenos de marinha,
chamada de “pec das
praias”, e o projeto que criminaliza a
prática do aborto, nos casos já previstos em lei (estupro, risco de
vida da mulher e má-formação do feto), acima de 22 semanas.
Os governistas puseram o pescoço para fora depois que a derrota, em ambos os casos, já estava consolidada. Calejados pela derrubada do veto presidencial à proibição da saída temporária dos presos por razão familiar, as chamadas “saidinhas”, fruto de um cochilo em relação ao consenso punitivista vigente, deixaram de enxergar o fosso que separa uma sociedade conservadora da extrema-direita fundamentalista.
Na PEC das praias e no PL do aborto o que
aconteceu foi mais uma derrota da aliança entre o bolsonarismo e o centrão do
que uma vitória do governo. No primeiro caso, a PEC já havia passado
discretamente pela Câmara na legislatura passada, já sob a batuta do presidente
da Casa, Arthur Lira (PP-AL), e buscava uma via ligeira para ser
referendada pelo Senado quando foi atravessada pelo ativismo digital de
organizações não-governamentais de ambientalistas que contaminou as redes antes
que a atriz Luana Piovani se engalfinhasse com o jogador Neymar
Jr. e o assunto contaminasse as redes sociais.
No segundo caso, o acordo de gaveta entre o
autor do projeto e Lira, acabou sendo confirmado por Sóstenes Cavalcante.
O deputado do PL do Rio disse que, obtida a urgência, poderia votá-lo até o
“último dia do mandato” do presidente da Câmara. A existência do acordo ficou
patente quando o deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo
principal aliado de Lira no PT, lavou as mãos
em relação ao projeto.
Foi só com as primeiras pesquisas sobre a
surra do PL nas redes sociais e as manifestações de rua que a
primeira-dama, Janja da Silva, sempre muito vigiada em seus
posicionamentos sobre costumes, veio ao X,
ex-Twitter, se manifestar, sendo seguida por uma miríade de
ministros (Alexandre Padilha, Marina Silva, Silvio Almeida, Cida
Gonçalves e Anielle Franco) e pelo próprio marido. De Roma, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva chamou de “insanidade” a tentativa de
se imputar uma pena para as mulheres equivalente ao dobro daquela do
estuprador.
Nenhum deles apareceu com sacadas melhores do
que aquelas que pautaram a mobilização nas redes e nas ruas. Todos ficaram
a reboque da campanha “criança não é mãe, estuprador não é pai”, que começou
espontânea, puxada por grupos feministas e entidades de direitos humanos, e
acabou impulsionada pela massificação de notícias dando conta de pastores
evangélicos estupradores. A guerrilha digital recuperou um vídeo do
médico Drauzio Varella, de 2014, por ocasião de uma primeira tentativa da
bancada evangélica no tema, em que ele dizia que se estaria autorizando os
homens a escolher em que mulheres desejavam fazer filhos.
No acompanhamento sistemático de grupos
qualitativos de pesquisa, Esther Solano, socióloga e professora da
Unifesp, constata que os governistas se limitam a ser reativos na pauta moral
pela incapacidade de entender os paradoxos e sofisticações de uma sociedade que
cultiva valores conservadores (veto às saidinhas) mas não aceita ser garfada em
seus direitos (PEC das praias) nem enganada sobre quem é a vítima de um caso de
estupro (PL do aborto).
A despeito das duas últimas derrotas, Solano
aposta que o recuo da extrema-direita é tático. A grotesca encenação sobre
assistolia fetal, método usado para a interrupção da gravidez acima de 22
semanas, no Senado na manhã desta segunda-feira é um exemplo. Já estava marcada
quando o embate na Câmara se deu, mas não foi desmarcado nem amenizado e teria
irritado o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O avanço da extrema direita fundamentalista
nos conselhos tutelares estendeu o tapete vermelho para a entrada desta pauta
nas eleições municipais, especialmente em São Paulo. A campanha do
prefeito e pré-candidato à reeleição Ricardo Nunes poderá se valer do
tema aquecido na opinião pública para confrontar o pré-candidato do Psol, Guilherme
Boulos, que é favorável ao aborto para além dos casos previstos em lei,
contrariamente à pré-candidata do PSB, Tabata Amaral.
Em maio, reportagem da revista digital
“Pública” deu conta da ofensiva de Nunes contra o serviço de aborto legal do
hospital municipal de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade.
Funcionava ali o serviço com o maior número de casos da cidade de interrupção
acima de 22 semanas, mas foi fechado pela prefeitura e seus médicos,
perseguidos por uma aliança entre o Conselho Regional de Medicina e a
prefeitura.
Cochilo do governo em relação ao consenso
punitivista vigente, o privou de enxergar o fosso que separa uma sociedade
conservadora da extrema direita fundamentalista.
Perfeito.
ResponderExcluirInteressante que ninguém questionou Porque disso tudo a partir de uma decisão do STF liberando o aborto a partir dessa idade 22 semanas gestacional ou seja cinco meses e meio, quando a criança já pode nascer e viver a partir daí criou toda essa celeuma e em cima disso a CNBB tomou uma posição clara e se manifestou em carta pública apoiando a PL contra o aborto tramitando no Congresso Federal gostaria de ouvir manifestações a respeito
ResponderExcluirSó Jesus na causa,todo mundo está errado,sempre!
ResponderExcluirSempre excelentes os artigos da Maria Cristina Fernandes. Vou pesquisar sobre esta pesquisa da Ester Solana
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