O Globo
Matérias retrógradas, destruidoras de
direitos, estão sendo aprovadas a toque de caixa na Câmara dos Deputados
A sensação que fica é que há, à disposição do presidente da Câmara dos Deputados, uma caixa de horrores, de onde saem assombrações que ele pode usar na medida da sua conveniência. De lá acaba de sair a urgência para votar uma lei medieval, que retrocede onde deveríamos avançar. Um projeto que, se aprovado, ataca a mulher numa sociedade em que as mulheres se sentem acuadas diante dos números alarmantes de estupros e feminicídios. Uma sociedade na qual tantas meninas são proibidas de viver seu tempo de menina.
A forma de agir é a mesma. De surpresa,
aparecem projetos que ameaçam direitos, o plenário aprova o regime de urgência
e, da noite para o dia, passamos a conviver com mais um fantasma. Os atingidos
têm que largar o que estão fazendo para tentar evitar o pior. A agenda do país
vai sendo consumida por falsas emergências. Naqueles 24 segundos, parlamentares
sentados se tornaram cúmplices. E o país não sabe seus nomes e seus rostos.
Cúmplices do que? Primeiro do crime de jogar o país nas trevas, de aceitarem que
mulheres sejam a moeda de troca num jogo obscuro de poder e, por fim, de
cassarem seus próprios direitos. O debate que a tramitação normal permite morre
no regime de urgência, e o parlamento se torna o túmulo de um rito democrático.
No mesmo dia, outra urgência foi
aprovada, a da lei
antidelação, com seu enredo emaranhado. É de 2016 e o seu
reaparecimento como urgência, oito anos depois, mostra como o campo democrático
está se enredando em seus próprios erros. De autoria de um deputado do PT, pode
ser usada para beneficiar os que atacaram a democracia. A lei que regulamentou
a colaboração premiada é do governo Dilma
Rousseff e deu à Polícia Federal e ao Ministério Público uma
ferramenta poderosa no combate ao crime. O PT defende seu fim porque acha que
foi desvirtuada no combate à corrupção, os bolsonaristas querem o mesmo porque
acham que vão livrar golpistas em geral e Bolsonaro em particular da delação do
tenente-coronel Mauro Cid.
A proposta surgiu de forma casuística porque
o PT achava que estava sendo perseguido pelo próprio instrumento que criou. Os
erros da Lava Jato têm que ser separados do combate à corrupção em si, que
precisa continuar. Já está pacificado hoje que é preciso provas de corroboração
para que a delação seja válida. Ela serve para combater todos os crimes,
portanto impedir que um preso colabore com a Justiça favorece todas as
organizações criminosas. Há, ainda, a questão da coalizão espúria. Esquerda e
direita podem formar coalizões, mas não os democratas com a extrema direita,
que tem como objetivo a destruição da democracia.
Outros horrores saíram da caixa durante o
atual mandarinato na Câmara dos Deputados através do “regime de urgência”. Para
citar um caso, o PL do
Veneno estava lá dormindo há 24 anos e foi aprovado em quatro
horas. O Marco
Temporal foi votado a toque de caixa assim que o STF o
considerou inconstitucional. Há projetos que ganham o regime de urgência para
ser aprovado algum jabuti nele dependurado. Não percebem esses deputados da
calada da noite como rasgam seu próprio mandato ao suprimir o debate.
Da semana passada ficou o horror do PL
1904. Ele torna ainda mais retrógrado um projeto de 1940. O Brasil só
admite interrupção da gravidez em três casos — risco para a gestante, feto
anencefálico e estupro. A trágica realidade brasileira mostra que as meninas
são maioria entre as violentadas, que há barreiras judiciais e burocráticas
para se conseguir autorização para interromper a gravidez, e que elas, por
serem crianças, têm mais dificuldade em revelar a violência que sofreram.
A ministra Rosa Weber,
antes de se aposentar, propôs ao país avançar em relação à lei de 1940. E agora
a Câmara quer urgentemente retroceder. Rosa diz em seu voto que a mulher
brasileira é flagelada pela subcidadania ao longo da história. “Transcorridas
mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na
arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e
respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito”. E segue a ministra
dizendo que está em questão “a dignidade da pessoa humana, a autodeterminação
pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos, a igualdade”,
caminhos da busca da cidadania plena da mulher. Eu guardo o voto da Rosa na
tela do meu computador para reler em dias tristes.
Excelente! É muito nojento este projeto que criminaliza crianças e mulheres já violentadas, retirando delas direito que elas já têm há décadas.
ResponderExcluirAborto é questão polêmica,sempre.
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