sexta-feira, 28 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Desvincular BPC do salário mínimo é medida necessária

O Globo

Trocar correção pela inflação não traria perda a beneficiários e ajudaria a equilibrar as contas públicas

‘Não considero isso gasto, gente.’ A frase do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC), voltado a idosos e deficientes de baixa renda, revela o longo caminho que o governo tem a percorrer para controlar a dívida pública. Como o BPC está vinculado ao salário mínimo, desde o ano passado passou a ser regido pela mesma regra de correção, que prevê aumento acima da inflação.

O histórico recente do BPC é de alta. Nos 12 meses terminados em março, a quantidade de benefícios assistenciais cresceu 12%, pelos dados do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre). Essa expansão foi decisiva para aumentar o rombo da Previdência federal, equivalente a 3,9% do PIB em 2023. Isso se faz sentir nos resultados fiscais de maio, que registrou déficit de R$ 61 bilhões ante superávit de R$ 1,8 bilhão no ano passado. De acordo com o Tesouro, o déficit foi puxado pelo crescimento de R$ 24,4 bilhões nos benefícios previdenciários.

Embora o BPC não seja o único desses benefícios, o exemplo escolhido por Lula é perfeito para ilustrar a confusão que se dá em torno do reajuste de todos. Quando se fala em desvinculá-los do salário mínimo, não se quer deixar de garantir a quem recebe o mínimo necessário para sobreviver. É fundamental manter o poder de compra dos beneficiários. Para isso, porém, basta a correção pelos índices de inflação. Nas contas do economista Felipe Salto, mudar apenas a correção do BPC e benefícios como auxílio-doença poderia render aos cofres públicos o equivalente a R$ 20 bilhões pelos números deste ano. Isso ajudaria a evitar a explosão no custo da Previdência em relação às demais despesas do governo. Do jeito como está, o sistema é inviável.

Lula está certo em dizer ser preciso identificar quem recebe benefícios irregulares e cortar o desperdício. A Previdência atrai um sem-número de pequenos e grandes golpistas em busca de vantagens indevidas. Mas seria ingênuo superestimar os resultados dessa medida. Por maiores que se revelem as irregularidades, eliminá-las não será suficiente para equilibrar as contas. Para controlar o déficit fiscal, a única saída é diminuir despesas. E a desvinculação do BPC e de outros benefícios previdenciários do mínimo é uma forma simples de cortar, sem acarretar nenhuma perda a quem recebe.

Diante de tudo isso, é desolador o estágio incipiente desse debate no Palácio do Planalto. Lula ainda não se convenceu da urgência de controlar as despesas. “O problema não é que tem que cortar. O problema é saber se precisa efetivamente cortar ou se a gente precisa aumentar a arrecadação. Temos de fazer essa discussão”, disse nesta semana. O descasamento entre o entendimento dele e o do setor produtivo não poderia ser maior. Na economia real, a conclusão é que, num país com carga tributária escorchante, não dá mais para aumentar a arrecadação como pretende o governo. A desconfiança dos agentes econômicos é o principal fator responsável pela disparada do dólar nos últimos dias.

Enquanto as despesas do governo não couberem no Orçamento, isso resultará em endividamento galopante. A dívida pública alta e crescente torna a vida dos pobres muito mais difícil, pois juros altos inibem investimentos, geração de empregos e renda. A irresponsabilidade fiscal é socialmente injusta. Deixar de encarar essa realidade não a dissipará. Pelo contrário. Só a piorará.

Bolívia mostrou que espaço para golpe diminuiu na América Latina

O Globo

País que registra maior número de tentativas de ruptura desde 1945 saiu íntegro de mais uma quartelada

O fracasso da tentativa de golpe na Bolívia reforça a constatação de que diminuiu muito o espaço na América Latina para rupturas institucionais, comuns no passado. Desde a independência, em 1825, a Bolívia já sofreu quase duas centenas de golpes ou tentativas de golpe, nem todos bem-sucedidos. Desde 1945, é o país do mundo que registra o maior índice de golpismo, de acordo com dados do Cline Center da Universidade de Illinois — foram ao todo quatro conspirações, 18 tentativas de golpe e 17 golpes de Estado bem-sucedidos.

A última tentativa aconteceu na quarta-feira, quando o general Juan José Zúñiga, demitido na véspera do comando do Exército, entrou com suas tropas na sede do governo em La Paz, o Palácio Queimado, depois que um blindado arrombou as portas. Enfrentou o presidente Luis Arce — um político de esquerda oriundo do Movimento ao Socialismo (MAS), que depois rompeu com o ex-presidente Evo Morales. Diante da revolta popular, Zúñiga deu meia- volta e se retirou com seus soldados. Sem apoio nas Forças Armadas, terminou preso. Depois alegou que o golpe havia sido uma encenação tramada com Arce para aumentar sua popularidade.

Na América Latina, é longínquo o passado de ditaduras das décadas de 1960, 1970 e 1980. Os tempos mudaram. Tanto que a quartelada despertou reprovação praticamente unânime no continente. A começar pelos vizinhos Brasil e Argentina. Mesmo não sendo integrante pleno do Mercosul, a Bolívia está obrigada a cumprir a cláusula democrática do bloco. De acordo com esse dispositivo, a ruptura institucional acarreta punição com suspensão ou expulsão.

A Bolívia, como qualquer democracia, deve resolver seus impasses pelo exercício da política e pela consulta periódica à população em eleições abertas e transparentes. As bolivianas serão realizadas no ano que vem. Há grande possibilidade de Arce, ao tentar a reeleição, enfrentar seu ex-padrinho político, Morales, de quem foi ministro da Economia por pouco mais de dez anos.

Arce já disse que a candidatura de Morales será ilegal. Na entrevista concedida na segunda-feira que selou sua destituição do comando do Exército, Zúñiga, ao se referir à intenção de Morales de disputar mais uma eleição presidencial, afirmou que não permitiria que ele “pisoteie a Constituição, que desobedeça ao mandato do povo”. Se contava com a condescendência de Arce pelo ataque a seu provável rival, cometeu um erro de cálculo. Se há divergências entre interpretações do que estabelece a Constituição, que se consulte o Poder Judiciário. Nenhum general deve decidir nada pela força. Funciona assim nas democracias.

Eleição na França lança incerteza sobre estabilidade europeia

Valor Econômico

Para a UE, uma coalizão de governo fraca na França seria um cenário ruim, mas um governo minoritário de extrema direita seria um pesadelo

A França, e por tabela a União Europeia, pode dar um salto no escuro com as eleições legislativas deste fim de semana. Há riscos importantes, tanto do ponto de vista político como econômico. Essas incertezas podem causar volatilidade nos mercados europeus e talvez globais nos próximos meses.

Neste domingo os franceses irão eleger a nova Assembleia Nacional (o Parlamento), numa votação antecipada pelo presidente Emmanuel Macron após a derrota de seu partido nas eleições europeias, no início de junho. Foi uma aposta arriscada do presidente, cujo partido hoje lidera o governo, mas sem maioria. A Presidência não está em disputa, e Macron continuará no cargo até 2027.

A média das pesquisas feita pela “The Economist” indica que o partido de extrema direita Reunião Nacional, liderado por Marine Le Pen, lidera com cerca de 37% dos votos. Em segundo lugar está a coligação de esquerda/extrema esquerda Nova Frente Popular, com 29%. O Juntos, coligação centrista de Macron, está em terceiro, com 21%.

A eleição legislativa na França ocorre em dois turnos. Isto é, se nenhum candidato obtiver a maioria absoluta, os mais votados em cada distrito eleitoral disputam um segundo turno, marcado para 7 de julho. Isso costuma favorecer partidos centristas, já que eles tendem a herdar os votos dos candidatos que não passaram ao segundo turno.

A votação em dois turnos também dificulta a projeção das bancadas, já que o comportamento do eleitor no segundo turno não é claro. Ainda assim, as principais projeções apontam que nenhum partido ou coligação terá maioria absoluta na Assembleia. Como uma aliança entre a extrema direita e a frente esquerdista é inviável, o mais provável é que o novo governo surgirá de uma coalizão que envolverá os centristas de Macron. Porém, se a extrema direita chegar muito perto da maioria, poderá tentar formar governo minoritário.

A nova Assembleia Nacional elegerá então o primeiro-ministro. Os candidatos são: Jordan Bardella (Reunião Nacional), de apenas 28 anos, o esquerdista Manuel Bompard (38 anos) e o atual premiê Gabriel Attal (35 anos), pelo Juntos. Nada impede, porém, que outro nome surja das negociações. O provável impasse no Parlamento já aponta para negociações difíceis e para um governo fraco e dividido.

A França tem sistema de governo misto, no qual o premiê e o presidente dividem as atribuições. O presidente formalmente cuida de política externa e defesa. O premiê, das políticas internas. Mas quando o premiê é do mesmo partido do presidente, como hoje, este último é quem de fato lidera o governo.

Quem quer que venha a liderar o país nesse cenário, seja um governo de coalizão fraco, seja um governo minoritário de extrema direita, terá dificuldade de aprovar reformas importantes na Assembleia. Há um risco real de paralisia política. E, diante das promessas de campanha eleitoral, será ainda mais difícil realizar o ajuste fiscal de que o país precisa.

A principal preocupação dos eleitores, segundo as pesquisas, é a inflação, com queda do poder aquisitivo. A guerra na Ucrânia fez a UE deixar de comprar gás e petróleo da Rússia, o que gerou uma crise energética no continente. O preço da energia disparou, elevando a inflação e comendo uma parte maior da renda das famílias.

Tanto a direita como a esquerda estão prometendo mais gasto público e cortes de impostos para ajudar a população. Mas a França dificilmente poderá pagar esse tipo de bondade. Ao contrário, o país precisa de um ajuste fiscal. O déficit público, de 5,4% em 2023, está muito alto. Quase todos os países aumentaram dramaticamente o gasto durante a pandemia de covid-19, e muitos, como a França, estão com dificuldade de reduzi-lo. A média do déficit dos 27 países da UE foi de 3,5% no ano passado. A por ora suspensa regra do euro prevê déficit de até 3% do PIB.

Pesquisa feita pelo “Financial Times” indica que os franceses confiam mais na extrema direita para ajustar a economia. O risco maior é que aconteça algo parecido com a crise financeira de 2022 no Reino Unido. À época, a então nova premiê, a conservadora Liz Truss, propôs um programa econômico com aumento de gastos e corte de impostos, visto como inconsistente pelos mercados. Após forte queda nos ativos financeiros, foi obrigada a renunciar. Uma crise de confiança similar na França poderia abalar o euro, com repercussões globais. As principais bolsas europeias e o euro estão em queda desde a decisão de Macron de antecipar eleições.

Para a UE, uma coalizão de governo fraca na França seria um cenário ruim, mas um governo minoritário de extrema direita seria um pesadelo. Apesar de as decisões mais importantes na relação com a UE (como a escolha do presidente da Comissão Europeia) serem de atribuição de Macron, um governo francês de extrema direita pode dificultar a governança europeia. Tradicionalmente a UE tem dois motores políticos, a França e a Alemanha. Quando os dois funcionam bem e em conjunto, o bloco avança. Após as eleições francesas, o mais provável é que os dois governos estejam enfraquecidos politicamente, o que lança uma sombra de incertezas sobre o futuro da UE.

Que a quartelada tenha fim no continente

Folha de S. Paulo

Ensaio tosco de golpe, ainda nebuloso, fracassa na Bolívia; risco de saídas populistas e autoritárias deve ser observado

Bolívia passou por um inesperado, inusitado e tosco ensaio de golpe militar na quarta-feira (26). Sem evidente apoio popular nem de setores políticos, o general Juan José Zúñiga, recém-removido do posto de comandante do Exército, reuniu tropas e invadiu o palácio presidencial com um blindado.

A operação canhestra não vingou. O presidente Luis Arce encarou Zúñiga com a ordem para retirar-se e o entregou às autoridades policiais. As tropas leais ao general voltaram aos quartéis e, da aventura castrense, seguiu-se a demissão dos chefes das Forças Armadas.

Ainda são nebulosas as circunstâncias da investida armada contra o Estado de Direito no vizinho sul-americano, que pôs fim à ditadura militar com eleições a partir de 1982. Quarteladas do gênero, que proliferaram no continente durante os anos 1960 e 1970, pareciam erradicadas há décadas.

Em tempos mais recentes, os casos de ruptura democrática se deram com líderes civis se valendo de popularidade circunstancial para minar instituições e cooptar militares —assim foi, por exemplo, com Alberto Fujimori, que governou o Peru de 1990 a 2000, e Nicolás Maduro, agarrado ao poder na Venezuela desde 2013.

Na Bolívia, Evo Moralesparceiro do chavismo de Maduro e padrinho político do atual presidente, governou de 2006 a 2019, favorecido pela escalada dos preços das matérias-primas. Renunciou após obter o quarto mandato em eleição controversa, mas ainda é figura influente na política do país.

Acredita-se agora que o enfrentamento público com o general golpista possa alavancar a popularidade de Arce, combalida pela atividade econômica débil, com escassez de dólares e aumento do desemprego. Seu projeto de reeleição em 2025 depende também da retirada de Morales, com quem está rompido, da disputa.

A elucidação do episódio será essencial para a democracia boliviana. A Procuradoria-Geral do país abriu uma investigação contra Zúñiga, oficial contra o qual pesam denúncias de corrupção e de controle sobre um grupo militar envolvido em operações de contrabando e narcotráfico.

Demitido após críticas a uma eventual candidatura de Morales, o militar deixou o palácio presidencial declarando ter agido sob incentivo do próprio Arce, sem apresentar evidências disso.

No segundo país mais pobre da América do Sul, à frente apenas da devastada Venezuela, a fragilidade das forças políticas e da gestão econômica permanece um fator de instabilidade para a democracia.

Guardadas as proporções, o risco representado por saídas populistas e autoritárias ainda precisa ser observado pelos vizinhos.

O futuro está no berço

Folha de S. Paulo

Enquanto governos descuidarem da primeira infância, país continuará atrasado

Dentre as políticas mais comuns em boa parte dos países desenvolvidos estão aquelas voltadas a crianças de 0 a 5 anos de idade, já que a atenção a esse estrato produz benefícios duradouros tanto para indivíduos quanto para a sociedade.

Há descaso histórico no Brasil nessa seara, que contribui para perpetuar um ciclo de desperdício de capital humano e baixa produtividade, acirrando desigualdades.

Considerando que se avizinham as eleições municipais, o debate sobre o tema torna-se ainda mais pertinente. Afinal, são as prefeituras as responsáveis imediatas pelos aparelhos públicos que lidam diretamente com a primeira infância, tema de série de reportagens publicadas pela Folha.

Segundo o Plano Nacional de Educação (2014), 50% das crianças de até 3 anos deveriam estar em creches, e 100% daquelas entre 4 e 5 anos, na pré-escola, neste 2024. Mas a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) apontou taxas de 38,7% e 92,9%, respectivamente, em 2023.

Para piorar, parte considerável (38,5%) das crianças entre 1 e 3 anos estava fora do sistema de ensino não por vontade dos pais, mas porque não conseguiram vagas; ou seja, por inépcia do poder público.

A educação na primeira infância melhora o aprendizado nas séries futuras e contribui para o aumento da renda. Não só. Estudos do economista James Heckman, Prêmio Nobel em 2000, apontaram benefícios para saúde: menor risco de consumo de drogas, cuidado na alimentação e maior interesse em atividades físicas na fase adulta.

Heckman estimou que cada dólar gasto em programas para crianças desfavorecidas entre 0 e 5 anos gera retorno de 13% ao ano.

De acordo com pesquisa de 2023 do Ministério da Saúde22,9% das crianças nessa faixa têm atraso no desenvolvimento infantil (habilidades motoras, cognitivas, de linguagem e socioemocionais).

Candidatos a prefeitos precisam apresentar propostas para a primeira infância e eleitores devem exigi-las, antes e depois de depositar seus votos nas urnas. O governo federal, ao qual cabe desenvolver e guiar políticas nacionais, não pode se omitir sobre o tema.

É Lula quem fabrica sua própria crise

O Estado de S. Paulo

Tal como uma profecia autorrealizável, quanto mais o petista rejeita a necessidade de um ajuste fiscal, mais ele eleva o custo das medidas que terão de ser adotadas para reverter a sangria

Há muitas razões para ter algum otimismo sobre o Brasil. A economia cresce, a inflação está sob controle, o desemprego está baixo, a renda sobe e até os investimentos têm ensaiado uma recuperação. Não há problemas nas contas externas. Mesmo com o aumento das importações, a balança comercial acumula um saldo positivo, e o déficit em conta corrente até se elevou, mas é facilmente coberto pelo Investimento Direto no País (IDP).

Sabe-se, no entanto, que o País tem uma grande vulnerabilidade: uma política fiscal inconsistente, caracterizada por um desequilíbrio estrutural entre receitas e despesas de mais de dez anos. Esse rombo é a razão pela qual o Brasil pratica taxas de juros tão elevadas, e impedir que o buraco continue a crescer é – ou deveria ser – a principal tarefa de qualquer governo preocupado em criar um ambiente de negócios amigável à atração de investimentos.

O presidente Lula da Silva já demonstrou ser incapaz de assimilar essa lógica, mas, em uma conjuntura favorável, o mercado é capaz de relevar esse problema e apostar suas fichas na capacidade do ministro Fernando Haddad de convencê-lo a ter algum juízo na administração das contas públicas. No entanto, basta que algo mude na conjuntura para que a precariedade desse arranjo fique clara.

Foi o que ocorreu em março, quando o Federal Reserve decidiu prolongar o aperto nas taxas de juros norte-americanas – o maior em 23 anos – pela quinta vez consecutiva, decisão mantida também nas reuniões de maio e junho e sem perspectiva de revisão no curto prazo. Desde então, o dólar tem ganhado valor sobre muitas moedas no mundo, entre as quais o real.

A questão é que a moeda brasileira está entre as cinco que mais se desvalorizaram neste ano. E essa posição relativa, lamentavelmente, se deve muito a deméritos próprios – em especial, a evidente má vontade do governo em enfrentar seus desafios fiscais. Não se trata de mera impressão: foi uma decisão materializada em abril, quando o governo alterou as metas fiscais de 2025 e 2026 e driblou o arcabouço, aumentando o limite de gastos deste ano para reverter o parco contingenciamento anunciado em março.

Em paralelo, a agenda de recuperação de receitas da equipe econômica dá cada vez mais sinais de esgotamento. Principal aposta do governo para reforçar a arrecadação neste ano, a negociação especial para contribuintes derrotados pelo voto de desempate nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) não contabilizou uma única adesão formal até agora, e o Congresso devolveu trechos da medida provisória que limitavam o uso de créditos de PIS/Cofins pelas empresas.

Os números não mentem. O Tesouro Nacional divulgou que as contas do governo central registraram um déficit de R$ 61 bilhões em maio. Foi o segundo pior resultado para o mês em toda a série histórica, iniciada em 1997, superado apenas por maio de 2020, auge da covid-19.

O detalhe é que as receitas avançaram incríveis 9% em termos reais, resultado que só não impressiona mais que as despesas, que aumentaram em um ritmo 14% acima da inflação, como se o arcabouço fiscal nem sequer existisse. Em 12 meses, o rombo acumulado é de R$ 268,4 bilhões, o equivalente a 2,36% do PIB, muito acima da meta de déficit zero.

Não há crise financeira internacional nem uma pandemia a justificar essa gastança, que, não por acaso, muito se assemelha àquela promovida por Dilma Rousseff, presidente de triste memória. A exemplo de sua criatura, tudo que Lula fez, até agora, foi desautorizar as iniciativas dos poucos ministros que ainda defendem um mínimo de responsabilidade fiscal.

Lula acha que está tudo bem e, em seu negacionismo econômico, amplia incertezas e retroalimenta uma crise de confiança criada por suas próprias ações hesitantes e declarações desastrosas. Quanto mais o presidente fala, mais eleva a curva futura de juros e a desvalorização do real ante o dólar. Tal como uma profecia autorrealizável, quanto mais Lula da Silva rejeita o ajuste fiscal, mais aumenta o custo das medidas que serão necessárias para reverter essa sangria.

Ambição na educação também exige realismo

O Estado de S. Paulo

Novo PNE traz novas metas para os próximos dez anos sem que se tenha cumprido o atual. Ainda assim é uma virtude, desde que objetivos não fiquem mais uma vez no papel

Sem o alarde e os discursos públicos triunfantes habituais, o presidente Lula da Silva assinou, enfim, o projeto de lei que cria o novo Plano Nacional de Educação (PNE) e o encaminhou ao Congresso, abrindo caminho para a instituição de novas metas, diretrizes e objetivos para a educação brasileira nos próximos dez anos. A falta de destaque para a assinatura e os dois meses de atraso do envio são dois sinais preocupantes no contexto da revisão do plano, mas a maior inquietação é outra: o Brasil seguirá com novas e ambiciosas metas para o próximo decênio sem ter feito o dever de casa do anterior. Definido em 2014, durante o mandato de Dilma Rousseff, o plano atual chegou a este mês na vexatória situação de não ter nenhuma de suas 20 metas cumprida integralmente, e apenas 4 foram cumpridas parcialmente. Apesar disso, o novo PNE cria novos objetivos e institui metas ainda mais ambiciosas, por exemplo, na ampliação do acesso ao ensino e no aumento do número de crianças em creches, além de manter a já robusta previsão de chegar a um investimento na educação equivalente a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) – no cálculo mais atual, de 2020, esse índice ficou em 5,4%.

A proposta tem 18 objetivos, da creche ao ensino superior, que se desdobram em 58 metas e 253 estratégias. Ao pé da letra, ou dos números, trata-se de uma virtuosa carta de intenções. Além do financiamento da educação e de metas de equidade, registre-se, por exemplo, a meta destinada à alfabetização, na qual o objetivo principal é assegurar que, em cinco anos, no mínimo 75% das crianças estejam alfabetizadas ao final do 2.º ano do ensino fundamental, e todas as crianças devem estar alfabetizadas até o final do decênio. O PNE buscará ainda ter 60% das crianças de até três anos matriculadas em creches – hoje são 37,3%. Também há uma meta para redução de dez pontos porcentuais na desigualdade de acesso entre crianças pobres e mais ricas. Estão previstas a universalização do acesso e a garantia da permanência de alunos de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na educação básica, com a garantia de um sistema educacional inclusivo. O texto também estabelece internet de alta velocidade para uso pedagógico em 50% das escolas públicas da educação básica em até cinco anos e em 100% até o final dos dez anos de vigência do plano.

Num Brasil de atrasos e desigualdades educacionais, ambição é uma virtude. Mas as lições deixadas pelo descumprimento do plano atual sugerem que é preciso muito mais do que colocar uma lista de objetivos a alcançar, sem que o País defina mecanismos concretos para o seu atingimento – ou que, vá lá, cheguemos perto disso. Como não é impositivo, o PNE sempre correrá o risco de ser desvirtuado, limitado ou convertido em peça de ficção, seja por incompetência, limitações na avaliação e implementação de políticas ou mera má vontade dos governos. O plano atual passou por três governos federais e foi concluído no quarto, todos com prioridades diferentes e entraves diversos. Dilma Rousseff enfrentou seus incontáveis problemas de gestão, Michel Temer teve pouco tempo e Jair Bolsonaro produziu um MEC ausente, com ideias que tiraram o foco do que era importante. A pandemia, que provocou o fechamento das escolas por tempo em demasia e ampliou as desigualdades entre os alunos, também foi outro fator desabonador.

Tudo isso prejudicou a evolução das metas, conjugadas com a vocação para objetivos inalcançáveis enquanto reformas fundamentais eram deixadas de lado. O País também falhou no próprio monitoramento dos indicadores ao longo dos anos: eles estavam lá, como um adorno no horizonte, sem que nos apressássemos ou reagíssemos com o rigor devido conforme se distanciavam na paisagem educacional. É preciso reconhecer, porém, que mesmo propostas irrealistas (como a meta de 10% do PIB para os investimentos na educação) podem ajudar a ampliar as exigências por mais e melhores recursos para o setor, e por novos padrões de qualidade de infraestrutura, ensino, formação e gestão. Só não se pode aceitar que mais uma vez tenhamos ambição demais, daquelas que ficam só no papel.

O ‘Desenrola’ da Lava Jato

O Estado de S. Paulo

Governo oferece desconto camarada de 50% em multas de leniência. Empresas querem ainda mais

O governo Lula da Silva ofereceu descontos de até 50% em multas bilionárias impostas em acordos de leniência – legais, vale lembrar – firmados por empresas envolvidas em escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato. Companhias que há poucos anos reconheceram desvios em contratos firmados com o poder público aceitaram a proposta com ressalvas e querem ainda mais. Alegam que a realidade – ou melhor, o faturamento – mudou.

O caso está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) após PSOL, PCdoB e Solidariedade ajuizarem uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) em defesa de empreiteiras que alimentaram esquemas de corrupção em gestões petistas passadas. Pediram as agremiações alinhadas ao lulopetismo que seja reconhecido um suposto estado de coisas inconstitucional – instrumento criado na Corte Constitucional da Colômbia para tratar de sistemáticas e generalizadas violações de direitos. O que, sem dúvida, não é o caso.

A história recente conta que jorrou dinheiro – isso, sim, uma ilegalidade – para irrigar campanhas eleitorais de petistas e companhia bela em troca de obras, que, após a descoberta da pilhagem – sobretudo na Petrobras –, claro, rarearam. Eis o aperto no caixa.

A ação está sob a relatoria do ministro André Mendonça, que formou uma mesa de negociação com o governo e empresas para discutir a revisão dos acordos. A Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU) primeiramente propuseram abatimentos de 20% a 30% para Metha (antiga OAS), Nova Participações (Engevix), UTC Engenharia, Mover Participações (Camargo Corrêa), Andrade Gutierrez, Novonor (Odebrecht) e Braskem.

Os devedores reconhecem a dívida e dizem que querem pagá-la, mas não gostaram da proposta. Fato é que querem pagar o quanto bem entenderem e da forma que melhor lhes convier. Por isso, insistiam na pechincha e pediram um desconto de até 70%, o que, ainda bem, foi negado.

O governo, porém, cedeu e apresentou o desconto camarada, em uma última oferta. Em valores corrigidos, essas companhias devem ainda cerca de R$ 11,7 bilhões. Ao cortar pela metade esse saldo, o governo Lula da Silva se dispôs a abrir mão de cerca de R$ 5,8 bilhões. As empresas, que de ingênuas não têm nada, concordam em abater a multa com prejuízo fiscal, mas reivindicam agora que o benefício se dê sobre o total devedor – o que pode chegar a R$ 8 bilhões.

Como apurou o Estadão, as companhias estão divididas. Há advogados que ainda avaliam deixar correr a judicialização. Outros defendem a negociação – essa espécie de “Desenrola” da Lava Jato.

As ressalvas feitas poderão ser sanadas nos próximos dias. Até aqui, a CGU e a AGU resistiram a uma revisão tão radical quanto à pleiteada pelas empresas. Que assim se mantenham, haja vista que o abatimento de metade do débito sobre o saldo devedor é um excelente negócio – para as empreiteiras, não para os cofres públicos. Se o governo ceder mais, logo essas companhias vão cobrar indenização e exigir pedido de desculpas.

Epidemia de obesidade

Correio Braziliense

Mantidas as tendências atuais, 130 milhões de adultos brasileiros viverão com sobrepeso ou obesidade (75%), sendo 83 milhões com obesidade e 47 milhões com sobrepeso

Um tema muito complexo está sendo amplamente debatido nesta semana, em São Paulo: a obesidade. O congresso internacional reúne, até amanhã, autoridades e especialistas, entre os quais endocrinologistas, clínicos, oncologistas, angiologistas, enfim, toda a comunidade médica em torno do assunto. Os dados continuam alarmantes: quase metade dos adultos brasileiros viverão com obesidade em 20 anos; três quartos dos adultos brasileiros terão obesidade ou sobrepeso em 2044; obesidade em meninos e meninas de todas as idades no Brasil deve aumentar significativamente nos próximos 20 anos; e taxas de obesidade, obesidade severa e sobrepeso estão varrendo todas as áreas do Brasil e atingirão níveis recordes até 2030. 

As projeções vêm de estudo liderado pelo especialista em políticas públicas e gestão governamental Eduardo Augusto Fernandes Nilson, que é pesquisador e docente no Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília. E o que estamos fazendo para tentar mudar esse quadro? Comendo mais. De acordo com o levantamento, mantidas as tendências atuais, em 2044, 130 milhões de adultos brasileiros viverão com sobrepeso ou obesidade (75%), sendo 83 milhões com obesidade e 47 milhões com sobrepeso. Hoje, esse contingente está em 56%. 

Nos papers dos estudiosos, eles destacam a alavancada rumo à obesidade no Brasil entre 2006 e 2019. A população obesa praticamente dobrou, chegando a 20,3% dos adultos. Em 2030, a previsão é de que ultrapassemos os 68%, sendo 29,6% para obesidade e 38,5% para sobrepeso. Os especialistas chegam a considerar o problema como uma epidemia de obesidade, com destaque para as mulheres, os negros e outras etnias minoritárias. Sem contar os gastos com comorbidades decorrentes dos problemas primários.

Entre as causas que levam à obesidade e a várias doenças, está a redução do consumo de frutas, verduras e legumes, principalmente pelos jovens. Os alimentos saudáveis são substituídos por refrigerante, sucos artificiais e ultraprocessados, com elevado percentual de calorias. Segundo a Organização Mundial da Saúde, ao lado da ingesta de produtos não saudáveis, a maioria das pessoas é sedentária, quando deveria, no mínimo, praticar 150 minutos de atividades físicas semanais. O comprometimento do sono, quando o ideal é dormir entre sete e nove horas por dia, também está entre os fatores que levam ao excesso de peso corporal e favorecem o surgimento de várias doenças.

Nesse levantamento, foi montada uma tabela da vida mostrando os impactos do sobrepeso e da obesidade sobre 11 doenças associadas ao índice de massa corporal (IMC) elevado. E a lista é grande: doenças cardiovasculares, doença renal crônica, cânceres, diabetes, além de outras condições atreladas ao envelhecimento da população. A estimativa é de 10,9 milhões de novos casos de doenças crônicas e 1,32 milhão de mortes associados ao sobrepeso e à obesidade. No ranking das comorbidades, o diabetes lidera, com 51% dos novos casos, e as doenças cardiovasculares, com 57% em termos de mortes até 2044. 

Enquanto não houver um planejamento de políticas públicas específicas que possam oferecer tratamentos assertivos para a população que se encontra com sobrepeso ou obesa, além de esquemas de prevenção capazes de conter essa avalanche — e aí, sim, incluindo todas as faixas etárias —, vamos cada vez mais nos afastar dos objetivos de termos uma população majoritariamente saudável. A esperança existe, mas o tempo está ficando cada vez mais curto. 

 

 

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