quarta-feira, 5 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

TSE na luta contra as fake News

Correio Braziliense

A política é feita de diálogo entre diferentes, e muitas vezes divergentes, e não de inimigos que precisam se anular

A democracia é um valor inegociável. A afirmativa é inquestionável para as sociedades depois do pós-guerras, mas cada vez mais o modelo democrático como o conhecemos até hoje se vê ameaçado, com tentativas populistas e golpistas de perpetuação no poder ao redor do planeta. É preciso que as instituições combatam com o vigor necessário essas iniciativas para que nações não se vejam envoltas em regimes totalitários. Ao tomar posse no comando do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nesta segunda-feira, a ministra Cármen Lúcia prometeu combater "a mentira digital" contra as eleições, dando sequência ao que fez o ministro Alexandre de Moraes como presidente da corte eleitoral, a quem ela exaltou. À frente do TSE nos próximos dois anos e responsável por conduzir as eleições municipais, Cármen Lúcia promete não dar trégua ao que considera ser o que corrói a democracia.

Em uma sociedade na qual a imprensa tem suas regras, não há por que as redes sociais, que têm por trás de si companhias gigantes e transnacionais, não terem regras. Que essas sejam feitas com ampla discussão, mas sempre no sentido de se preservar a democracia e seus valores, lembrando que o principal deles é o debate entre contraditórios. Isso deve ser sempre balizado pela liberdade de expressão, independentemente de credo, gênero, classe social e etnia. Cabe pontuar que não se confunde com ofensas e agressões ao Estado Democratico de Direito ou ameaças a instituições democráticas.

Em sua posse, Cármen Lúcia descreveu a forma como as fake news e as mentiras buscam derrubar as democracias mundo afora. "A mentira amolece a humanidade porque planta o medo para colher a ditadura", disse a presidente do TSE. É preciso atentar para um aspecto que deve ser rechaçado sempre, sob o risco de a omissão levar ao agravamento da possibilidade de serem rompidos os valores democráticos: a ameaça. A política é feita de diálogo entre diferentes, e muitas vezes divergentes, e não de inimigos que precisam se anular. Há que se cuidar para que fatos que se tornam corriqueiros sejam combatidos com mais vigor.

Quando o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro disse no Acre, em meados de julho de 2018, com uma arma nas mãos, que era preciso "fuzilar a petralhada", estava declarando um partido político como inimigo a ser combatido, desenhando, assim, toda uma forma de enxergar a política que vem se mostrando cada vez mais forte. Atentado a bomba perto de aeroportos em horário de movimento, ainda que frustrado, e invasão e depredação de prédios públicos não podem ser relativizados e considerados manifestação de opinião. 

Para mostrar a importância de se preservar os valores democráticos, cabe lembrar um trecho do poema No caminho, com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa: "Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada". É preciso que não se normalizem os arroubos antidemocráticos praticados, muitas vezes, sob o manto da liberdade de expressão.

Cármen Lúcia tem de afastar TSE da polarização

O Globo

Nova presidente da Corte está certa no diagnóstico sobre desinformação, mas meta deve ser normalidade

Ao tomar posse pela segunda vez como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia fez duras críticas aos propagadores de desinformação nas redes sociais e demonstrou estar ciente dos riscos que enfrentará. Quando assumiu o TSE pela primeira vez, em 2012, a realidade era completamente outra. O Facebook acabara de ultrapassar o Orkut como maior rede social no Brasil e de comprar o Instagram. O WhatsApp ainda engatinhava. Os efeitos deletérios das redes sociais e aplicativos de mensagem ainda eram uma questão acadêmica.

Sintonizada com os novos tempos, Cármen referiu-se à “mentira digital” como insulto à dignidade humana. Ressaltou os prejuízos, sobretudo em período eleitoral, da comunicação em tempo real sem nenhum freio ou regulação. Tornou o combate a esses males o tema central de seu segundo mandato na presidência do TSE. Seu legado será julgado pelas ações que tomar daqui para a frente, sobretudo nas próximas eleições municipais.

O discurso dela é motivo de alento. Cármen demonstrou conhecimento da lógica perversa de funcionamento das plataformas digitais e de como candidatos mal-intencionados tiram proveito disso. Defendeu ainda a punição dos responsáveis pela desinformação. “O algoritmo do ódio, invisível e presente, senta-se à mesa de todos. É preciso ter em mente que ódio e violência não são gratuitos. Instigados por mentiras e vilanias, reproduzem-se. E esses ódios parecem intransponíveis. Não são. Contra o vírus da mentira, há o remédio eficaz da liberdade de informação séria e responsável”, afirmou. Noutro momento, disse que “o ilícito será investigado e, se provado, será punido na forma da legislação vigente”.

Antes de assumir a presidência, ela foi relatora de 12 resoluções do TSE no início do ano. Entre elas, a bem-vinda proibição de manipulação de áudios e vídeos com ferramentas de inteligência artificial (IA), conhecida como deepfake. A decisão não poderia ter sido mais oportuna, tamanha a profusão de conteúdos do tipo disseminados por atores políticos mal-intencionados.

Um vídeo fraudulento divulgado na semana passada mostra o porta-voz do Departamento de Estado americano afirmando que tropas ucranianas podem atacar Belgorod, na Rússia, com armas fornecidas pelos Estados Unidos. As imagens aparentam autenticidade. Na Índia, a campanha eleitoral foi inundada por manipulações feitas por IA. Um vídeo real foi adulterado para que o candidato oposicionista Rahul Gandhi dissesse que abandonava seu partido por ser incapaz de “continuar fingindo ser hindu”. Noutro deepfake, um ator famoso diz que o objetivo do primeiro-ministro Narendra Modi é celebrar miséria, pobreza, desemprego e inflação. No vídeo verdadeiro, ele elogiara Modi por celebrar a rica herança cultural e histórica da Índia.

É ingênuo acreditar que esse tipo de manipulação não esteja nos planos de candidatos e partidos aqui no Brasil. Por isso Cármen faz bem ao traçar como principal meta de seu mandato no comando do TSE o combate à desinformação nas próximas eleições. Será esse seu grande teste. Ela terá sucesso se conseguir evitar a proliferação de fraudes na campanha e, simultaneamente, se trouxer a atuação dos tribunais para um contexto de normalidade, que não alimente nem enfatize a polarização.

Serviço militar feminino voluntário é avanço para as Forças Armadas

O Globo

Inovação exige cuidados, mas amplia talentos à disposição e oferece nova porta de entrada à carreira militar

A cúpula das Forças Armadas e o Ministério da Defesa enfim decidiram abrir o alistamento militar para mulheres. A data inicial ainda não foi definida. O mais provável é que as jovens que completarem 18 anos em 2025 terão a oportunidade de se apresentar para entrar numa das Forças em 2026. A decisão marca um avanço. As Forças Armadas, como as demais instituições, devem refletir os valores mais caros da sociedade brasileira. Entre eles, a equidade entre os gêneros.

O simples fato de mulheres desejarem se alistar justifica a mudança de posição. No caso do Brasil, ainda há uma vantagem. Por terem em média mais anos de estudo, as mulheres elevarão a capacidade das Forças Armadas num momento em que estratégias e armamentos ganham em complexidade. Em 2022, 79,7% das mulheres de 15 a 17 anos frequentavam o ensino médio, ante 71% dos homens. No ensino superior, no grupo entre 18 e 24 anos, elas também eram destaque. Três em cada dez mulheres estavam numa faculdade. Entre os homens, 21%.

As mulheres integram as Forças Armadas desde o século passado, nas escolas que preparam oficiais e praças. No Exército são 6% do efetivo terrestre, na Marinha 11,5% dos cargos ativos e na Aeronáutica 21%. A experiência acumulada demonstra que será preciso se precaver contra abusos, principalmente se a procura feminina pelo alistamento for grande. A parte fácil — e imprescindível — tem a ver com infraestrutura: são necessários banheiros e dormitórios separados. O mais difícil será mudar uma cultura tradicionalmente machista, reforçar os canais de denúncia e oferecer um programa de mentoria para que as novas recrutas se sintam ao mesmo tempo seguras e confiantes nas possibilidades da carreira.

A inovação do alistamento militar não deverá arrefecer o debate sobre limites à atuação feminina. Três ações no Supremo Tribunal Federal (STF) contestam situações em que mulheres são tratadas de forma diferente, como nas avaliações para cargos com exigências de desempenho físico. A controvérsia a respeito da participação em todos os tipos de combate é global. Nos países da Otan, não há unanimidade sobre como tratar a igualdade de gênero e o imperativo da eficácia operacional. Os estudos dão indicações contraditórias sobre desempenho e coesão.

O Brasil é um dos 60 países do mundo com serviço militar masculino obrigatório. A criação da versão voluntária para mulheres é um passo na direção certa. Todas as jovens brasileiras que se sentirem inclinadas à carreira militar poderão agora aproveitar esse canal de entrada. Com isso, o universo de talentos à disposição das Forças Armadas crescerá de forma significativa. O país só tem a ganhar.

PIB avançou no 1º tri, mas incerteza cresceu

Folha de S. Paulo

Alta foi puxada por emprego, renda e benefícios sociais; condições para a queda dos juros se estreitaram desde então

economia voltou a avançar com maior vigor no início deste ano, depois de seis meses de estagnação. A alta de 0,8% do PIB no primeiro trimestre e outros indicadores sugerem que por ora é razoável esperar que o crescimento de 2024 possa ficar entre 2% e 2,5%.

Caso venha a se confirmar, tal resultado será o melhor desempenho trienal desde 2011-13 (tirando da conta os anos atípicos da pandemia, 2020 e 2021). Ainda assim, trata-se de um aumento que não deve ser considerado satisfatório para que o país supere suas fragilidades socioeconômicas.

A questão imediata é saber se a atividade manterá ao menos o ritmo de progresso, ainda modesto.
No curtíssimo prazo, a alta das despesas em benefícios sociais e precatórios incentivaram o PIB. O salário mínimo mais elevado e a expansão de empregos e do rendimento médio do trabalho foram o esteio do crescimento no período.

O aporte na capacidade produtiva voltou enfim a subir; no acumulado de quatro trimestres, porém, recuou. A taxa de investimento é das mais baixas do século. O avanço do PIB deve-se mais ao consumo, em parte impulsionado pela despesa extra do governo, que tem limites já muito evidentes.

Assim, melhorias recentes logo vão se tornar insustentáveis.

Novas incertezas nublam as perspectivas imediatas. A catástrofe no Rio Grande do Sul destruiu vidas, trabalho e capacidade produtiva; seus efeitos sobre o PIB por enquanto são incalculáveis.

Também há indefinição no âmbito internacional. A queda dos juros no Brasil depende, em parte relevante, das taxas nos Estados Unidos. Por ora, o aperto monetário americano contribui para a piora das condições financeiras por aqui.

Ademais, a projeção de dívida pública crescente, a descrença generalizada no cumprimento das metas de déficit orçamentário e indefinições sobre o comando do Banco Central devem impedir a baixa da Selic —tudo isso já eleva as taxas de juros de longo prazo.

Assim, o pequeno alívio no crédito decorrente da queda da taxa básica, em curso desde agosto de 2023, deve perder força no fim do ano. Embora o desempenho do mercado de trabalho seja positivo, há dúvida a respeito de quanto tempo uma situação de baixa de desemprego, aumento da média salarial e queda da inflação pode ser sustentável.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderia contribuir para a mitigação de incertezas e para o crescimento futuro se apresentasse um compromisso inequívoco com a responsabilidade fiscal, a autonomia do BC e a boa gestão das estatais.

Tudo indica, entretanto, que não se deve apostar em mostras de pragmatismo por parte de Brasília.

Polos paulistanos

Folha de S. Paulo

Na esteira do embate nacional, mais eleitores se dizem de direita e esquerda

Desde o restabelecimento da democracia no país, a cidade de São Paulo mostra uma expressiva parcela de eleitores alinhada às convicções conservadoras. Esse contingente, que havia perdido algum terreno no início deste século, voltou a se fortalecer nos últimos anos.

Em 2003, segundo pesquisa do Datafolha, 27% dos paulistanos aptos a votar se declaravam de direita. O percentual caiu a 20% nas sondagens sobre o tema realizadas em 2006 e 2013; agora, são 28%.

É notável que, mesmo ainda inferior, a fatia autodeclarada de esquerda do eleitorado paulistano tenha apresentado crescimento talvez até mais agudo no último período, saltando de 14% para 21% —é preciso levar em conta, porém, a margem de erro nos dois casos.

Parece natural inferir que a ampliação das cifras reflete o acirramento da polarização política e ideológica do país no decênio, marcado pelos protestos populares de 2013, ascensão e queda da Operação Lava Jato, o impeachment da petista Dilma Rousseff e a entrada em cena do bolsonarismo.

Não é de espantar que tudo isso esteja associado à tomada de posições mais assertivas e menos moderadas por parte dos eleitores. A parcela dos paulistanos que dizem não saber sua preferência no espectro ideológico caiu de 16%, em 2013, para 8% hoje.

Complexo, o perfil dos polos desafia estereótipos. A direita é mais forte na base da pirâmide social, com 48% dos que não estudaram além do fundamental e 32% dos que ganham até dois salários mínimos. Sem deixar de ser competitiva em outros estratos, a esquerda tem liderança mais clara na faixa de renda acima de dez mínimos (39%).

De tal panorama não se devem extrair previsões para a eleição municipal desde ano —desde a redemocratização, a cidade teve prefeitos de orientações variadas. Um vasto grupo mais moderado de centro-esquerda (10%), centro (22%) e centro-direita (12%) será certamente decisivo no pleito.

Difícil crer, no entanto, que o eleito vá desfrutar de índices muito elevados de popularidade ao longo do mandato, numa metrópole já tradicionalmente pouco propensa à satisfação com governantes.

Cármen Lúcia e a eleição como juízo final

O Estado de S. Paulo

Em sua posse no TSE, a ministra repetiu à exaustão as palavras ‘ódio’, ‘mentira’ e ‘medo’, como se estivéssemos às portas do apocalipse, e não de uma eleição como outra qualquer

Parece haver consenso entre os comentaristas especializados no Judiciário de que a ministra Cármen Lúcia, que acaba de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tem um estilo mais moderado que seu antecessor, Alexandre de Moraes. Talvez tenha – espera-se que tenha – em seus atos. Mas, a julgar pelo seu discurso de posse, não o tem nas palavras.

Numa peroração exaltada, repleta de invectivas, frases de efeito e barroquismos, a ministra parece estar disposta a tratar o TSE como um “tribunal da verdade” nas próximas eleições. Em apenas 12 minutos, a palavra “mentira” foi citada 15 vezes; “ódio”, 6 vezes; e “medo”, outras tantas. Só faltaram “apocalipse” e “juízo final”.

Num instante de lucidez, Cármen Lúcia notou: “Contra o vírus da mentira, há o remédio da liberdade de informação séria e responsável”. De fato, a liberdade de expressão não é um ônus, mas o principal ativo para combater a desinformação.

Pesquisas empíricas evidenciam que os meios mais eficazes de neutralizar a desinformação são informações corretivas, como checagem de fatos, ou rotulagem, como a adição de advertências a conteúdos disputados. A tecnologia pode ser útil, sobretudo se houver incentivos ao engajamento da sociedade civil, de baixo para cima. É o caso, por exemplo, de um formato como o da Wikipédia ou do mecanismo implementado pelo X de “notas da comunidade”. A Justiça eleitoral deveria incentivar esse tipo de cooperação com instituições independentes, plataformas digitais, imprensa e, sobretudo, cidadãos.

Mas nada remotamente parecido foi invocado no discurso da ministra. Tudo se passa como se o País vivesse numa distopia, e os cidadãos precisassem ser tutelados por um poder paternalista que age de cima para baixo, higienizando o debate público do “abuso das máquinas falseadoras que nos tornam cativos do medo” e da “mentira espalhada pelo poderoso ecossistema das plataformas”.

Ora, serão eleições como outras quaisquer. Haverá, como sempre houve, oportunistas dispostos a ludibriar. Mas é um dado universal da psicologia humana que as pessoas não querem ser ludibriadas. Publicações distorcidas ou falsas podem até enrijecer crenças preexistentes. Mas há pouca evidência de que elas, por si sós, alterem comportamentos, como votar ou se vacinar.

O cidadão não é idiota e sabe onde buscar informações confiáveis. Segundo pesquisa recente do Datafolha com a população da cidade de São Paulo, 60% confiam em alguma medida nos jornais impressos e 49% confiam plenamente. Em seguida vêm os programas jornalísticos de rádio (48% de confiança plena); telejornais transmitidos pela TV (46%); sites de notícias (42%); e, por fim, as redes sociais, nas quais o índice de confiança (de 31% a 15%, a depender da rede) é inverso ao de desconfiança (de 52% a 73%).

O caminho é prestigiar as fontes confiáveis e cooperar com elas. Países com uma imprensa diversificada e robusta são mais resilientes à desinformação. Ao invés de restringir o debate, o melhor remédio é ampliá-lo e qualificá-lo. Não faltam instituições e, sobretudo, pessoas de boa-fé dispostas a isso.

Mas a tendência do Judiciário é cada vez mais arbitrar de motu proprio e a priori o que pode e não pode ser dito. O TSE, por sinal, se autoconcedeu poderes para determinar “de ofício” (ou seja, sem provocação das partes lesadas ou do Ministério Público) a remoção de conteúdos. Nas eleições de 2022, foi o voto de Cármem Lúcia que validou a censura prévia de um documentário sobre o atentado a Jair Bolsonaro em 2018. À época, a ministra chegou a dizer que seguia o voto do relator “com todos os cuidados”, alertando que via a proibição como uma “situação excepcionalíssima” que a preocupava “enormemente”. A julgar por seu discurso, essa preocupação ficou no passado, e a exceção – que já não se coadunava com a proibição constitucional à censura – tende a se tornar regra.

Em 2015, num voto emblemático a propósito da publicação de biografias não autorizadas, Cármen Lúcia apelou à sabedoria popular: disse ela que “o calaboca já morreu”. Hoje, a desconfiança dessa mesma sabedoria parece servir de pretexto para a ministra e seus colegas conjurarem o defunto.

Virou desforra

O Estado de S. Paulo

Ao que parece, há dois tipos de ritos de persecução criminal no País. Um é destinado aos cidadãos comuns; o outro, aos processos em que o ministro Alexandre de Moraes figura como vítima

Em fevereiro, a Polícia Federal (PF) arquivou o inquérito aberto para apurar as agressões que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes alegou ter sofrido, junto com sua família, no aeroporto de Roma. À época, o delegado Hiroshi Sakaki decidiu não indiciar o empresário Roberto Mantovani Filho, sua mulher, Andreia Munarão, e o genro do casal, Alex Zanatta, por entender que as ofensas que o trio teria dirigido a Moraes, além do tapa que Zanatta desferiu contra o filho do ministro, eram crimes de menor potencial ofensivo – o que já era evidente desde que o caso veio a público.

Agindo assim, Sakaki nada mais fez do que cumprir uma norma editada pela própria PF, segundo a qual os crimes de menor potencial ofensivo, como foi aquela lamentável altercação no aeroporto, não ensejam indiciamentos. Ademais, o delegado justificou que, para indiciar os investigados, os crimes dos quais eram suspeitos deveriam ser passíveis de extradição – o que não é o caso da injúria real.

É fato que Mantovani e seus familiares agiram como típicos vândalos bolsonaristas, que vivem de acossar e estigmatizar pessoas e instituições nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas. Mas daí a apontar as pesadas baterias penais do Estado contra eles vai uma longa e civilizada distância. Ao que parece, porém, um desfecho anticlimático para o caso não seria bem recebido em Brasília – terra onde ofensas contra autoridades, nestes tempos esquisitos, chegam a ser tratadas como levantes contra o Estado Democrático de Direito.

Um mês após a conclusão do inquérito, o ministro Dias Toffoli, relator do caso no STF, atendeu a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e determinou que a PF interrogasse Mantovani Filho outra vez. A PGR, segundo consta, queria saber se o empresário teria manipulado o vídeo do entrevero entre as famílias. Para essa nova fase de diligências, foi incumbido o delegado federal Thiago Rezende, haja vista que Sakaki pediu para deixar o caso. As razões de seu afastamento são desconhecidas, mas, de fato, o delegado nada mais tinha a fazer, pois ficou claro que a boa técnica policial adotada por ele não poderia levar a outro desfecho senão o arquivamento sem indiciamentos.

Eis que agora, sem que qualquer fato novo tenha sido trazido aos autos, o novo delegado decidiu mudar a posição da PF e indiciou Mantovani, a mulher e o genro pelas supostas hostilidades contra Moraes. É difícil tirar a razão do advogado da família, Ralph Tórtima, quando ele diz a este jornal que o inquérito contra seus clientes, “lamentavelmente, tem se revelado um verdadeiro vale-tudo”.

Como o próprio delegado Thiago Rezende reconhece, “muito embora as palavras proferidas (pelos investigados) não possam ser ouvidas, nada nas imagens contradiz o que foi dito pelos agressores”. Como se vê, portanto, a nova conclusão, desta feita favorável ao ministro Alexandre de Moraes, ampara-se apenas e tão somente nos interesses do magistrado, não em prova concreta.

Parece haver dois tipos de ritos de persecução criminal no País. Um é destinado aos cidadãos comuns; o outro, aos processos em que o ministro Alexandre de Moraes figura como vítima. Nesse caso, a ordem jurídica é reinterpretada conforme o freguês. Só isso explica as muitas excrescências que têm sido naturalizadas quando o ministro figura num dos polos da ação. O magistrado, por exemplo, acaba de expedir mandados de prisão preventiva contra dois acusados de ameaçar sua família no mesmíssimo feito em que, corretamente, se declarou impedido de relatar. O que justifica essa bagunça?

O redivivo inquérito do aeroporto nem sequer deveria ter sido instaurado. Não fossem as vítimas quem são, é improvável que a rusga tivesse chegado ao conhecimento de uma autoridade policial. E, se tivesse, dificilmente iria mais longe do que uma carraspana do delegado de plantão. Mas, em se tratando de um ministro do STF, em particular de Moraes, tratado como a encarnação do anjo da guarda da democracia brasileira, tudo muda de figura.

O preço da indulgência

O Estado de S. Paulo

Servidores ambientais se aproveitam da inércia do governo para ampliar greve nociva à economia

Parecem insuficientes os prejuízos já impostos pela “operação-padrão” dos funcionários federais do setor ambiental. Há seis meses os servidores suspenderam trabalhos em campo, como fiscalizações e vistorias, afetando o combate ao desmatamento, travando obras que precisam de licenciamento e gerando problemas em cascata para empresas e para o próprio governo federal. Agora anunciam uma paralisação geral nesta quarta-feira, Dia Mundial do Meio Ambiente, para reivindicar a reestruturação da carreira, além de um indicativo de greve para a próxima semana. Ou seja, a bomba-relógio ambiental, se já era preocupante, pode tornar-se perturbadora.

Os grevistas querem chamar a atenção para o que consideram desinteresse do governo por suas demandas. Tal desinteresse, porém, beira a indulgência. Se o complacente presidente Lula da Silva não dá qualquer sinal de que pretende se desgastar em negociações salariais, muito menos numa necessária reestruturação da carreira do funcionalismo, ninguém do seu governo parece empenhado o suficiente para enfrentar o problema. Sobretudo quando servidores de braços cruzados sabotam atividades essenciais para a economia. O próprio Lula já havia aberto a porteira para movimentos grevistas passarem: “Não tenho moral para falar contra greve, nasci das greves”, disse ele, numa fala que ecoou como um incentivo às paralisações.

O prolongamento da “operação-padrão” do setor ambiental, eufemismo para greve, já demonstrou seus efeitos. A redução do ritmo de trabalho diminuiu o volume de autorizações a menos da metade: a queda da emissão de licenças e autorizações foi de 180 para 69 entre janeiro e abril, se comparado ao mesmo período de 2023 e 2024. A atual produtividade está abaixo da registrada na gestão do então presidente Jair Bolsonaro, período no qual os servidores do Ibama e do Instituto Chico Mendes (ICMBio) alegam ter ocorrido desmonte dos órgãos ambientais.

Ao desmonte dos órgãos, contudo, responde-se com desmonte da economia. O setor de transmissão de energia elétrica calcula que o Ibama analisa projetos que somam R$ 75 bilhões em investimentos, considerando lotes arrematados em leilões realizados entre 2021 e 2024. Termoelétricas, parques eólicos e linhas de transmissão esperam a assinatura dos fiscais. Em maio, os fabricantes de veículos automotores informavam haver 50 mil carros aguardando a liberação da licença de importação. Segundo o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás, o setor público deixou de arrecadar mais de R$ 1 bilhão. A queda de faturamento do setor teria sido de R$ 3,4 bilhões, enquanto outros R$ 650 milhões de novos investimentos estão parados por falta de licenciamento. Sem esquecer o abalo na geração de empregos e nos autos de infração de crimes ambientais.

Enquanto isso, o Brasil se vê entre a pressão dos servidores e a inércia do governo, que adotou o pior caminho: ignorar tanto as carências na infraestrutura dos órgãos ambientais, problema reconhecido pelos próprios executivos dos setores afetados, quanto os efeitos devastadores deixados por uma paralisação que já foi longe demais. Um misto de indiferença e incompetência que está custando caro ao País.

Estímulos ajudam PIB, enquanto investimentos preocupam

Valor Econômico

O baixo investimento é um obstáculo à continuidade da expansão sem pressão inflacionária

A economia brasileira foi melhor do que a média das expectativas. Teve crescimento de 0,8% no primeiro trimestre do ano e de 2,5% em relação ao mesmo período de 2023. O desempenho de todos os componentes do Produto Interno Bruto (PIB), de demanda ou de oferta, com exceção da indústria, superou a mediana das projeções feitas por dezenas de consultorias e economistas ouvidos pelo Valor. Esse ímpeto será interrompido ao longo dos trimestres, em especial o segundo, quando a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul deve mostrar sua plena força econômica negativa. A gigantesca tarefa de reconstrução da quarta maior economia regional do país nos próximos meses, porém, deverá acrescentar forças ao consumo e aos investimentos.

O comportamento dos serviços e de seu simétrico pelo lado da demanda, do consumo das famílias, superou muito as expectativas. Os serviços cresceram 1,4% no trimestre em relação ao último período de 2023, enquanto a mediana das projeções indicava avanço de apenas 0,5%. No caso das despesas das famílias, a mediana das previsões, de alta de 1,1%, foi facilmente superada pelo 1,5% registrado. Influiu significativamente nos números do PIB trimestral, também contrariando as projeções, o desempenho da agropecuária. Era esperada uma desaceleração significativa em relação ao ritmo do primeiro trimestre de 2023, quando o setor teve excepcional resultado (16,2%), e se previa avanço de 8,8%. Cresceu 11,3%.

A economia sustentou bom desempenho mesmo com o empuxo negativo do setor externo, sobre o qual as previsões também ficaram bem aquém do que de fato ocorreu. O recuo previsto de 0,6% nas exportações tornou-se de fato um avanço de 0,2%. As importações, que deveriam crescer 1,7%, subiram 6,5%. Com isso, o setor externo retirou nada menos de 1,15 ponto percentual do PIB, sendo compensado pelo aumento da demanda doméstica de 1,9%, segundo Alberto Ramos, diretor de pesquisas para a América Latina da Goldman Sachs.

O ritmo forte do emprego e da renda, que se nutriram também dos estímulos dados pelo governo e da queda da taxa de juros, explica grande parte dos resultados. Pelas medidas tradicionais, a economia se aproxima do pleno emprego, com avanço real anual de 4% nos salários. É o que explica o progresso das atividades em todos os segmentos dos serviços, com destaque para o varejo e os serviços pessoais. Por qualquer padrão de comparação (trimestre contra trimestre anterior, ou contra o mesmo trimestre do exercício passado ou ainda quatro trimestres sobre os quatro antecedentes), todas as rubricas do segmento apresentam resultado positivo.

O crescimento significativo do trimestre, que interrompe um semestre de estagnação, tem vulnerabilidades evidentes. Uma delas é a queda da poupança e do investimento. No caso da formação bruta de capital fixo, apesar do aumento de 4,1% sobre o trimestre anterior (segundo resultado positivo consecutivo), a performance em quatro trimestres mostra retração de 2,7%, só um pouco melhor que a queda de 3,1% na mesma conta feita com os dados do trimestre anterior. Em relação ao primeiro trimestre de 2023, a taxa de investimento recuou de 17,1% do PIB para 16,9% do PIB. O recuo da taxa de poupança nesse período foi ainda maior, de 17,5% para 16,2%.

O investimento, uma das garantias de expansão continuada, encontra-se 15,1% abaixo do pico da série, no segundo trimestre de 2013, quando atingiu 20,7% do PIB. A taxa de poupança está cerca de 20% abaixo do pico de 20,8% alcançados em meados de 2021, após os extraordinários auxílios às famílias concedidos durante a pandemia. Serviços, consumo das famílias e do governo e o PIB chegaram no primeiro trimestre do ano ao maior nível da série histórica.

O baixo investimento é um obstáculo à continuidade da expansão sem pressão inflacionária. A forte performance dos serviços, alavancada pelo emprego e maiores salários, acrescenta outro sinal de alerta sobre a evolução futura dos preços. Estudo dos economistas do Itaú mostrou que a inflação do setor é um pouco mais acentuada do que a que tem sido captada pelas metodologias tradicionais (Valor, ontem), e beira 5% em 12 meses em abril, ante IPCA de 3,7%.

A inflação de serviços é uma das preocupações do Banco Central; a situação fiscal é outra. Boa parte da força da atividade do primeiro trimestre é pelo despejo de R$ 120 bilhões de pagamento de precatórios no fim de dezembro e início do ano. O programa Desenrola abriu um espaço de R$ 50 bilhões ocupado antes por endividamento inadimplente que não poderia ser renovado. A massa de rendimentos real mensal no primeiro trimestre subiu R$ 19 bilhões em relação ao mesmo período do ano passado, ou R$ 60 bilhões nos três meses. Ainda que todo esse dinheiro não desague de imediato no consumo, é uma soma de recursos semelhante aos R$ 148 bilhões que aportaram na economia com a PEC de Transição no ano passado, algo como 1,6% do PIB, sem contar a expansão do crédito, que crescerá perto de 10% para as pessoas físicas no ano.

A contradição entre política fiscal em expansão e política monetária em contração deverá acarretar juros altos e mais inflação, uma combinação fatal anticrescimento.

 TSE na luta contra as fake News

Correio Braziliense

A política é feita de diálogo entre diferentes, e muitas vezes divergentes, e não de inimigos que precisam se anular

A democracia é um valor inegociável. A afirmativa é inquestionável para as sociedades depois do pós-guerras, mas cada vez mais o modelo democrático como o conhecemos até hoje se vê ameaçado, com tentativas populistas e golpistas de perpetuação no poder ao redor do planeta. É preciso que as instituições combatam com o vigor necessário essas iniciativas para que nações não se vejam envoltas em regimes totalitários. Ao tomar posse no comando do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nesta segunda-feira, a ministra Cármen Lúcia prometeu combater "a mentira digital" contra as eleições, dando sequência ao que fez o ministro Alexandre de Moraes como presidente da corte eleitoral, a quem ela exaltou. À frente do TSE nos próximos dois anos e responsável por conduzir as eleições municipais, Cármen Lúcia promete não dar trégua ao que considera ser o que corrói a democracia.

Em uma sociedade na qual a imprensa tem suas regras, não há por que as redes sociais, que têm por trás de si companhias gigantes e transnacionais, não terem regras. Que essas sejam feitas com ampla discussão, mas sempre no sentido de se preservar a democracia e seus valores, lembrando que o principal deles é o debate entre contraditórios. Isso deve ser sempre balizado pela liberdade de expressão, independentemente de credo, gênero, classe social e etnia. Cabe pontuar que não se confunde com ofensas e agressões ao Estado Democratico de Direito ou ameaças a instituições democráticas.

Em sua posse, Cármen Lúcia descreveu a forma como as fake news e as mentiras buscam derrubar as democracias mundo afora. "A mentira amolece a humanidade porque planta o medo para colher a ditadura", disse a presidente do TSE. É preciso atentar para um aspecto que deve ser rechaçado sempre, sob o risco de a omissão levar ao agravamento da possibilidade de serem rompidos os valores democráticos: a ameaça. A política é feita de diálogo entre diferentes, e muitas vezes divergentes, e não de inimigos que precisam se anular. Há que se cuidar para que fatos que se tornam corriqueiros sejam combatidos com mais vigor.

Quando o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro disse no Acre, em meados de julho de 2018, com uma arma nas mãos, que era preciso "fuzilar a petralhada", estava declarando um partido político como inimigo a ser combatido, desenhando, assim, toda uma forma de enxergar a política que vem se mostrando cada vez mais forte. Atentado a bomba perto de aeroportos em horário de movimento, ainda que frustrado, e invasão e depredação de prédios públicos não podem ser relativizados e considerados manifestação de opinião. 

Para mostrar a importância de se preservar os valores democráticos, cabe lembrar um trecho do poema No caminho, com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa: "Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada". É preciso que não se normalizem os arroubos antidemocráticos praticados, muitas vezes, sob o manto da liberdade de expressão.

 

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