sábado, 15 de junho de 2024

Pablo Ortellado - Delação premiada sem coação

O Globo

Precisamos escapar do partidarismo imediatista e discutir as propostas pelo mérito

Câmara dos Deputados aprovou um pedido de urgência para o Projeto de Lei que impede presos de fazer acordos de delação premiada. O projeto, proposto em 2016 pelo deputado do PT Wadih Damous, visava a impedir abusos nas colaborações premiadas da Operação Lava-Jato e foi desengavetado por Arthur Lira como aceno aos bolsonaristas que veem abusos nas delações das investigações do 8 de Janeiro e dos atos antidemocráticos.

Na justificativa para a proposição, Damous argumenta que a medida preserva a voluntariedade da delação premiada, evitando que a prisão cautelar seja usada como instrumento de pressão psicológica sobre o acusado. A medida também evitaria prisões processuais sem fundamentação idônea, decretadas apenas para pressionar o preso a aceitar um acordo de delação.

O argumento foi abraçado pelos petistas durante os anos de vigor da Lava-Jato e agora pelos bolsonaristas. Estes esperam que o projeto possa provocar uma decisão do Supremo anulando a delação de Mauro Cid. Embora a medida não tenha efeito retroativo, anulando acordos já homologados, sua aprovação poderia autorizar o argumento de que delações anteriores foram viciadas.

Sem surpresa, boa parte do debate sobre a medida está marcada por oportunismo: a ação beneficia a quem? Precisamos escapar, porém, do partidarismo imediatista e discutir as propostas pelo mérito, e não pelos efeitos sobre certos grupos.

Tomemos o caso de Filipe Martins, o assessor de Bolsonaro preso por Alexandre de Moraes na Operação Tempus Veritatis. Martins não é exatamente um ator político que desperta minha simpatia. Defende posições que considero antidemocráticas e foi flagrado fazendo um gesto racista (ele nega). Além disso, parece haver boas evidências de que participou na elaboração da “minuta do golpe”. Se for provado que é culpado, torço por uma condenação dura.

Minha simpatia ou a falta dela, porém, não deveriam importar. Sua prisão preventiva se baseou em incertezas sobre sua localização e em indícios de que poderia estar fora do país para evitar responsabilização penal. Segundo Cid, Martins estava na lista de passageiros que viajaram no avião presidencial para Orlando em 30 de dezembro de 2022. O site Metrópoles publicou reportagem afirmando que o nome de Filipe constava no portal I-94, produzido pelo Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos. A Polícia Federal encontrou Martins na casa dos sogros em Ponta Grossa (PR) e alegou que a falta de registro de entrada no país indicava intenção de burlar o controle migratório.

Desde então, a defesa de Martins ofereceu provas de que ele esteve sempre no Brasil. Documentos de autoridades americanas e brasileiras mostraram que não desembarcou nos Estados Unidos nem embarcou no avião presidencial. A defesa apresentou passagens aéreas no Brasil, fotografias, pedidos no iFood e outras evidências de que ele não viajou para os Estados Unidos. Mesmo assim, Martins permanece preso.

Bolsonaristas alegam que a prisão visa a forçá-lo a aceitar uma delação premiada. Não temos como saber se é verdade. Porém o simples fato de presos poderem fazer delação e de a prisão poder ser usada como elemento coercivo lança suspeitas sobre sua manutenção.

O fim da colaboração premiada de presos é razoável, independentemente de beneficiar bolsonaristas acusados de golpe ou petistas acusados de corrupção. Precisamos separar nossas aspirações políticas dos meios de chegar a elas. A História nos mostra que descuidos e excessos na Lava-Jato, que em algum momento pareceram ajudá-la, são hoje os fundamentos para que possa ser paulatinamente desmontada. Não podemos deixar que o mesmo aconteça com as investigações do 8 de Janeiro.

 

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