sexta-feira, 21 de junho de 2024

Rogério F. Werneck - Estabilização como consenso

O Globo

A condução coerente da política macroeconômica deve ser tratada como um valor suprapartidário

“30 anos do Real: crônicas no calor do momento” é o título do novo livro de Gustavo Franco, Edmar Bacha e Pedro Malan, publicado pela Intrínseca, em que analisam a economia brasileira nas últimas décadas, da perspectiva do Plano Real e do programa de estabilização que a ele se seguiu.

Por reunir artigos escritos a cada comemoração do Plano nos últimos 30 anos, não é bem do Real que o livro primordialmente trata, mas da política econômica dos governos que se seguiram aos dois mandatos de FHC.

Há um fio condutor claro. O foco é no esforço de décadas, ainda inconcluso, de consolidação da estabilização macroeconômica como um valor consensual, suprapartidário, enraizado no conjunto de valores compartilhados pelas principais forças políticas do país, estejam no governo ou na oposição. Enraizado no que no mundo anglo-saxão se denomina common ground.

O que de melhor aqui posso fazer, para salientar a importância do livro, é ressaltar o quanto o país pôde avançar nesse esforço, desde seu momento mais dramático, na campanha presidencial de 2002, que os autores apenas tangenciam.

Para entender o tumulto econômico-financeiro que então se estabeleceu, é preciso retroceder às eleições municipais de 2000, quando o PT determinou que, em paralelo a questões locais, a campanha do partido teria como carro-chefe a realização, Brasil afora, de um plebiscito informal que indagaria se a dívida pública deveria ser paga ou não.

Não se tratava de iniciativa das alas mais radicais do partido. Longe disso. O então presidente do PT, deputado José Dirceu, chegou a submeter proposta de oficialização do plebiscito informal por decreto legislativo. E, um a um, os principais economistas então associados ao PT, alguns já falecidos, assinaram artigos na imprensa dando respaldo pessoal ao plebiscito.

O leitor interessado poderá conseguir acesso à maior parte desses artigos, do ano 2000, no excelente acervo da Folha de S.Paulo, disponível no site do jornal. É no mínimo curioso que, apesar de tão bem documentado e da importância crucial que acabou tendo, o desastroso plebiscito da dívida venha sendo solenemente ignorado em grande parte da historiografia recente do PT.

Como se poderia prever, menos de um ano e meio após o término das eleições municipais, quando o candidato do PT se firmou nas pesquisas como claro favorito na eleição presidencial, em meados de 2002, o temor de um calote da dívida pública deflagrou devastador processo de desestabilização financeira, à medida que detentores de ativos, em massa, tentaram se proteger contra perdas patrimoniais.

Para encurtar uma tensa e tortuosa história, foi em meio a esse turbilhão que Lula da Silva e a cúpula do PT se viram compelidos a deixar de lado a inconsequência e se comprometer de público com uma condução responsável da política macroeconômica.

ma assombrosa metamorfose a toque de caixa, que só se tornou possível graças ao sucesso de dramáticas negociações de Pedro Malan, Arminio Fraga e do próprio FHC com a cúpula do PT, feitas, em grande medida, por intermédio de Antonio Palloci, futuro ministro da Fazenda do primeiro governo Lula.

Tendo afinal conquistado a Presidência da República, o PT teve de se desfazer às pressas de seu discurso radical, para se deslocar para o centro do espectro político e adotar como sua a política econômica do governo anterior. O que parecia ser um abismo intransponível tinha dado lugar a um amplo conjunto de ideias sensatas compartilhadas por governo e oposição.

Foi só o início de uma longa saga. Um início espetacular, é verdade. Mas não levou muito tempo para que ficasse claro que não seria assim tão fácil. Que haveria idas e vindas. Que a metamorfose talvez não fosse irreversível. E que poderia haver grandes retrocessos. Como no mandato e meio de Dilma Rousseff. E agora.

Tudo indica que a saga da consolidação da ideia de condução coerente da política macroeconômica como um valor suprapartidário ainda parece bem longe do fim.

Mais oportuno, o livro não poderia ser.

 

 

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